A moça infeliz no jogo e infeliz no amor e como ela me salvou

Pra quem vem de Brasília, a cidade dos vazios e dos silêncios, o Rio de Janeiro é o cântico dos cânticos urbanos – do caos urbano

Agosto 13, 2025 - 04:00
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A moça infeliz no jogo e infeliz no amor e como ela me salvou

A moça que esquentava o pão na chapa não estava num bom dia: “E tem mais, esse negócio de feliz no amor e infeliz no jogo ou feliz no jogo e infeliz no amor é balela, sou infeliz nos dois”. Falava alto pra toda a clientela da padaria ouvir, em mais uma manhã fria no Rio de Janeiro. Tomando meu café com leite e pão com ovo, quase beijei a moça que se diz sem sorte tanto no jogo quanto no amor.

Ela me deu um mote para a crônica da semana, eu que já estava ficando apreensiva. Tinha acabado de chegar à cidade dos mais inspirados cronistas brasileiros e tudo o que eu tinha era nada, coisa nenhuma, zero crônica. Como pode alguém chegar ao Rio de Janeiro e não ter assunto pra uma crônica? Logo na cidade dos cronistas da estirpe de Machado de Assis, João do Rio, Lima Barreto, Carlos Drummond de Andrade, Clarice Lispector, Rubem Braga e tantos mais?

Se a crônica nasceu nos jornais franceses como um modo de acompanhar a cronologia dos acontecimentos – chronos quer dizer tempo –, no Brasil ela se transformou num modo subjetivo de acompanhar a vida urbana acontecendo diante dos nossos olhos. A crônica é o nossa jabuticaba literária, donde brotaram frutos dulcíssimos. Jabuticabemo-nos, por exemplo, com Machado de Assis em crônica de 1897: “Gosto de catar o mínimo e o escondido.

Onde ninguém mete o nariz, aí entra o meu com a curiosidade estreita que descobre o encoberto”. Cronista não é um ofício, é um modo de colher jabuticaba onde parece só haver um matagal caótico e perverso. Mas o cronista tem necessidade vital de ouvir a música dos acontecimentos, por mais caótica que seja a circunstância. Foi assim que o jabuticabal das crônicas brasileiras brotou no Rio de Janeiro entre o fim do século XIX e começo do XX, quando a cidade começou a se modernizar.

Pra quem vem de Brasília, a cidade dos vazios e dos silêncios, o Rio de Janeiro é o cântico dos cânticos urbanos – do caos urbano, pois é preciso sim certo caos para que haja vida urbana. Daqui de onde escrevo, no nono andar de um prédio antigo, consigo ver por detrás dos edifícios da frente um pedaço de morro pontiagudo coberto de vegetação, ouço buzinas de variados tons e intensidades, rangidos de motos, gente cantando alto em plena segunda-feira, ecos de acontecimentos urbanos.

Olhando em perspectiva para os quadrantes do planeta, tudo parece estar no limite, mas a cidade segue sua rotina, a moça faz o pão na chapa reclamando da sorte, um homem esperando o café se assusta ao telefone (“Ela está com depressão? Ah, queda de pressão”), a garota do caixa ensina um remédio tiro e queda pra sinusite, as crianças de uniforme e mochila passam correndo pela calçada – a cidade segue vivendo como se nada de grave estivesse acontecendo.

A cidade é sábia, ela sabe que é preciso seguir adiante, é preciso dar conta do hoje e do agora, nem que seja reclamando do azar no jogo e no amor. A moça da padaria fez do lamento a sua crônica instantânea. E eu anoitei, grata por ela me tirar da total falta de assunto e me fazer lembrar que foi assim, ouvindo a gente anônima nas ruas, que João do Rio escreveu algumas de suas mais belas crônicas. “A rua tem alma!”, ele escreveu. “A rua é agasalhadora da miséria. Os desgraçados não se sentem de todo sem o auxílio dos deuses enquanto diante dos seus olhos uma rua abre para outra rua”.

Uma rua se abre para uma padaria que se abre para uma moça fazendo pão na chapa que se abre pra um lamento que se abre pra uma crônica. Talvez se não houvesse a cidade, se não houvesse a rua, não existiria o cronista. Eu mesma, sem as cidades e as ruas, as casas e as gentes das cidades, teria sido uma jabuticaba que não brotou.

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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