As Coreias estão em uma guerra de informações — e Kim Jong Un pode estar vencendo
Mídia e organizações da Coreia do Sul driblam bloqueio de Kim Jong-Un com k-pop e dramas coreanos A fronteira norte-coreana é repleta de cercas densas de arame farpado e guardas fazendo patrulhas Getty Images / BBC News Brasil A fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul é cercada por densas cercas de arame farpado e centenas de postos de guarda. Mas, espalhado entre eles, há algo ainda mais incomum: alto-falantes gigantes, camuflados em verde. Enquanto eu observava o Norte numa tarde do mês passado, um dos alto-falantes começou a tocar músicas pop sul-coreanas em volume alto, intercaladas com mensagens subversivas. "Quando viajamos para o exterior, isso nos energiza", ecoou uma voz feminina do outro lado da fronteira — uma provocação óbvia, já que os norte-coreanos não têm permissão para sair do país. Do lado norte-coreano, eu podia ouvir de longe uma música de propaganda militar, enquanto seu o regime tentava abafar as transmissões inflamatórias. Tecnicamente, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul ainda estão em guerra e, embora já tenham se passado anos desde que um dos lados atacou o outro, os dois lutam em uma frente mais sutil: uma guerra de informação. O Sul tenta enviar informações ao Norte, e o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-Un, tenta a todo custo bloqueá-las. A Coreia do Norte é o único país do mundo onde a internet ainda não se difundiu plenamente. Todos os canais de TV, estações de rádio e jornais são administrados pelo Estado. "A razão para esse controle é que grande parte da mitologia em torno da família Kim é inventada. Muito do que eles contam às pessoas são mentiras" Expor essas mentiras a um número suficiente de pessoas pode fazer com que o regime caia. É isso que pensa a Coreia do Sul. Os alto-falantes são uma ferramenta usada pelo governo sul-coreano, mas, nos bastidores, um movimento clandestino mais sofisticado está crescendo. Um pequeno número de emissoras e organizações sem fins lucrativos transmite informações para o país na calada da noite em ondas de rádio curtas e médias, para que os norte-coreanos possam sintonizar e ouvir em segredo. Milhares de pen drives e cartões micro-SD são contrabandeados pela fronteira todo mês, carregados com informações estrangeiras — entre elas, filmes sul-coreanos, dramas de TV e músicas pop, além de notícias, tudo criado para desafiar a propaganda norte-coreana. Mas agora aqueles que trabalham na área temem que a Coreia do Norte esteja em vantagem. Kim não só está reprimindo duramente aqueles flagrados com conteúdo estrangeiro, como o futuro desse trabalho pode estar em risco. Grande parte dele é financiado pelo governo dos Estados Unidos e foi afetado pelos recentes cortes do presidente americano, Donald Trump, a programas de ajuda humanitária. Como isso afeta a longa guerra de informação entre os dois lados? Contrabandeando música pop e séries de TV Todo mês, uma equipe do Unification Media Group (UMG), uma organização sem fins lucrativos sul-coreana, analisa as últimas notícias e ofertas de entretenimento para criar playlists que eles esperam que repercutam na população do Norte. Em seguida, eles as carregam em dispositivos, que são categorizados de acordo com o risco de visualização. Em pen drives de baixo risco, estão dramas da TV sul-coreana e músicas pop — recentemente, eles incluíram uma série romântica da Netflix, "Se a Vida te Der Tangerinas...", e um hit da popular cantora e rapper sul-coreana Jennie (ex-integrante do grupo feminino Blackpink). As opções de alto risco incluem o que a equipe chama de "programas educacionais" – informações para ensinar os norte-coreanos sobre democracia e direitos humanos, o conteúdo que Kim supostamente mais teme. Os pen drives são então enviados para a fronteira chinesa, onde os parceiros de confiança da UMG os transportam através do rio para a Coreia do Norte, correndo grande risco. As séries dramáticas da TV sul-coreana (os populares "doramas") podem parecer inofensivas, mas revelam muito sobre a vida cotidiana no país — pessoas morando em apartamentos altos, dirigindo carros velozes e comendo em restaurantes de luxo. Isso destaca tanto a liberdade deles quanto o atraso da Coreia do Norte. E desafia uma das maiores invenções de Kim: a de que os habitantes do Sul são pobres e miseravelmente oprimidos. "Algumas [pessoas] nos dizem que choraram assistindo a esses dramas e que eles as fizeram pensar sobre seus próprios sonhos pela primeira vez" É difícil saber exatamente quantas pessoas acessam os pen drives, mas depoimentos de desertores recentes parecem sugerir que as informações estão se espalhando e causando impacto. "A maioria dos desertores e refugiados norte-coreanos recentes dizem que foi o conteúdo estrangeiro que os motivou a arriscar suas vidas para escapar", diz Sokeel Park, cuja organização Liberty in North Korea ("Liberdade na Coréia do Norte", na tradução) trabalha para distribuir esse conteúdo. Não há oposição política nem dissidentes conhecidos na Coreia do Norte, e reunir-s


Mídia e organizações da Coreia do Sul driblam bloqueio de Kim Jong-Un com k-pop e dramas coreanos A fronteira norte-coreana é repleta de cercas densas de arame farpado e guardas fazendo patrulhas Getty Images / BBC News Brasil A fronteira entre a Coreia do Norte e a Coreia do Sul é cercada por densas cercas de arame farpado e centenas de postos de guarda. Mas, espalhado entre eles, há algo ainda mais incomum: alto-falantes gigantes, camuflados em verde. Enquanto eu observava o Norte numa tarde do mês passado, um dos alto-falantes começou a tocar músicas pop sul-coreanas em volume alto, intercaladas com mensagens subversivas. "Quando viajamos para o exterior, isso nos energiza", ecoou uma voz feminina do outro lado da fronteira — uma provocação óbvia, já que os norte-coreanos não têm permissão para sair do país. Do lado norte-coreano, eu podia ouvir de longe uma música de propaganda militar, enquanto seu o regime tentava abafar as transmissões inflamatórias. Tecnicamente, a Coreia do Norte e a Coreia do Sul ainda estão em guerra e, embora já tenham se passado anos desde que um dos lados atacou o outro, os dois lutam em uma frente mais sutil: uma guerra de informação. O Sul tenta enviar informações ao Norte, e o líder da Coreia do Norte, Kim Jong-Un, tenta a todo custo bloqueá-las. A Coreia do Norte é o único país do mundo onde a internet ainda não se difundiu plenamente. Todos os canais de TV, estações de rádio e jornais são administrados pelo Estado. "A razão para esse controle é que grande parte da mitologia em torno da família Kim é inventada. Muito do que eles contam às pessoas são mentiras" Expor essas mentiras a um número suficiente de pessoas pode fazer com que o regime caia. É isso que pensa a Coreia do Sul. Os alto-falantes são uma ferramenta usada pelo governo sul-coreano, mas, nos bastidores, um movimento clandestino mais sofisticado está crescendo. Um pequeno número de emissoras e organizações sem fins lucrativos transmite informações para o país na calada da noite em ondas de rádio curtas e médias, para que os norte-coreanos possam sintonizar e ouvir em segredo. Milhares de pen drives e cartões micro-SD são contrabandeados pela fronteira todo mês, carregados com informações estrangeiras — entre elas, filmes sul-coreanos, dramas de TV e músicas pop, além de notícias, tudo criado para desafiar a propaganda norte-coreana. Mas agora aqueles que trabalham na área temem que a Coreia do Norte esteja em vantagem. Kim não só está reprimindo duramente aqueles flagrados com conteúdo estrangeiro, como o futuro desse trabalho pode estar em risco. Grande parte dele é financiado pelo governo dos Estados Unidos e foi afetado pelos recentes cortes do presidente americano, Donald Trump, a programas de ajuda humanitária. Como isso afeta a longa guerra de informação entre os dois lados? Contrabandeando música pop e séries de TV Todo mês, uma equipe do Unification Media Group (UMG), uma organização sem fins lucrativos sul-coreana, analisa as últimas notícias e ofertas de entretenimento para criar playlists que eles esperam que repercutam na população do Norte. Em seguida, eles as carregam em dispositivos, que são categorizados de acordo com o risco de visualização. Em pen drives de baixo risco, estão dramas da TV sul-coreana e músicas pop — recentemente, eles incluíram uma série romântica da Netflix, "Se a Vida te Der Tangerinas...", e um hit da popular cantora e rapper sul-coreana Jennie (ex-integrante do grupo feminino Blackpink). As opções de alto risco incluem o que a equipe chama de "programas educacionais" – informações para ensinar os norte-coreanos sobre democracia e direitos humanos, o conteúdo que Kim supostamente mais teme. Os pen drives são então enviados para a fronteira chinesa, onde os parceiros de confiança da UMG os transportam através do rio para a Coreia do Norte, correndo grande risco. As séries dramáticas da TV sul-coreana (os populares "doramas") podem parecer inofensivas, mas revelam muito sobre a vida cotidiana no país — pessoas morando em apartamentos altos, dirigindo carros velozes e comendo em restaurantes de luxo. Isso destaca tanto a liberdade deles quanto o atraso da Coreia do Norte. E desafia uma das maiores invenções de Kim: a de que os habitantes do Sul são pobres e miseravelmente oprimidos. "Algumas [pessoas] nos dizem que choraram assistindo a esses dramas e que eles as fizeram pensar sobre seus próprios sonhos pela primeira vez" É difícil saber exatamente quantas pessoas acessam os pen drives, mas depoimentos de desertores recentes parecem sugerir que as informações estão se espalhando e causando impacto. "A maioria dos desertores e refugiados norte-coreanos recentes dizem que foi o conteúdo estrangeiro que os motivou a arriscar suas vidas para escapar", diz Sokeel Park, cuja organização Liberty in North Korea ("Liberdade na Coréia do Norte", na tradução) trabalha para distribuir esse conteúdo. Não há oposição política nem dissidentes conhecidos na Coreia do Norte, e reunir-se para protestar é muito perigoso, mas Park espera que alguns se sintam inspirados a realizar atos individuais de resistência. Fuga da Coreia do Norte Kang Gyuri, de 24 anos, cresceu na Coreia do Norte, onde administrava um negócio de pesca. No final de 2023, ela fugiu para a Coreia do Sul de barco. Assistir a programas de TV estrangeiros a inspirou, em parte, a fugir, diz ela. "Eu me sentia tão sufocada e, de repente, tive uma vontade enorme de ir embora." Quando nos encontramos em um parque em uma tarde ensolarada em Seul no mês passado, ela se lembrou de ouvir programas de rádio com a mãe quando criança. Ela assistiu ao seu primeiro "dorama" aos 10 anos. Anos depois, descobriu que pen drives e cartões SD estavam sendo contrabandeados para o país dentro de caixas de frutas. Quanto mais observava, mais percebia que o governo estava mentindo para ela. "Eu achava normal que o Estado nos restringisse tanto. Achei que outros países convivessem com esse controle. Mas depois percebi que isso só acontecia na Coreia do Norte." Quase todas as pessoas que ela conhecia assistiam a programas de TV e filmes sul-coreanos. Ela e seus amigos trocavam seus pen drives. "Conversamos sobre os dramas e atores populares e os ídolos do K-pop que achávamos bonitos, como alguns membros do BTS." "Também falávamos sobre como a economia da Coreia do Sul era tão desenvolvida; simplesmente não podíamos criticar o regime norte-coreano diretamente." Os programas também influenciaram a maneira como ela e seus amigos conversavam e se vestiam. "A juventude norte-coreana mudou rapidamente." Esquadrões de repressão juvenil e punições Kim Jong Un, ciente do risco disso tudo para seu regime, está revidando. Durante a pandemia, ele construiu novas cercas elétricas ao longo da fronteira com a China, dificultando o contrabando de informações. E novas leis introduzidas em 2020 aumentaram as punições para quem é flagrado consumindo e compartilhando mídia estrangeira. Uma delas afirma que aqueles que distribuem esse conteúdo podem ser presos ou executados. Isso teve um efeito inibidor. "Essa mídia costumava estar disponível para compra em mercados. As pessoas a vendiam abertamente, mas agora você só pode obtê-la de pessoas em quem confia", diz Lee. Após o início da repressão, Kang e suas amigas também ficaram mais cautelosas. "Não conversamos mais sobre isso, a menos que sejamos muito próximas, e mesmo assim somos muito mais reservadas", admite ela. Ela diz estar ciente de que mais jovens estão sendo executados por serem flagrados com conteúdo sul-coreano. Recentemente, Kim também reprimiu comportamentos que poderiam ser associados à exibição dos K-dramas. Em 2023, ele tornou crime o uso de frases ou sotaques sul-coreanos. Membros de "esquadrões de repressão à juventude" patrulham as ruas, encarregados de monitorar o comportamento dos jovens. Kang lembra de ter sido parada com mais frequência, antes de escapar, e repreendida por se vestir e pentear-se como uma sul-coreana. Os esquadrões confiscavam seu telefone e liam suas mensagens de texto para ter certeza de que ela não havia usado nenhum termo sul-coreano. No final de 2024, um celular norte-coreano foi contrabandeado para fora do país pelo Daily NK (serviço de notícias da organização de mídia UMG, sediada em Seul). O telefone foi programado para que, quando uma variante sul-coreana de uma palavra fosse digitada, ela desaparecesse automaticamente, substituída pelo equivalente norte-coreano — algo quase orwelliano. "Os smartphones agora são parte integrante da maneira como a Coreia do Norte tenta doutrinar as pessoas" Após todas essas medidas repressivas, ele acredita que a Coreia do Norte está "começando a levar vantagem" nessa guerra de informação. O efeito Trump Após o retorno de Donald Trump à Casa Branca no início deste ano, foram cortados fundos para diversas organizações de ajuda humanitária, incluindo algumas que trabalham para informar os norte-coreanos. Ele também suspendeu o financiamento de dois serviços de notícias financiados pelo governo federal: a Rádio Free Asia e a Voz da América (VOA), que transmitiam notícias todas as noites para a Coreia do Norte. Trump acusou a VOA de ser "radical" e anti-Trump. A Casa Branca disse que a medida "garantiria que os contribuintes não seriam mais responsáveis por propaganda radical". Mas Steve Herman, ex-chefe do escritório da VOA em Seul, argumenta: "Esta era uma das poucas janelas para o mundo que o povo norte-coreano tinha, e ela ficou em silêncio sem nenhuma explicação." A UMG ainda está esperando para descobrir se seu financiamento será cortado permanentemente. Park, da Liberty na Coreia do Norte, argumenta que Trump "incidentalmente" deu uma ajuda a Kim e chama a atitude de "miopia". Ele argumenta que a Coreia do Norte, com sua crescente coleção de armas nucleares, representa uma grande ameaça à segurança — e que, já que a diplomacia e a pressão militar não conseguiram convencer Kim a desnuclearizar, a informação é a melhor arma que sobra. "Não estamos apenas tentando conter a ameaça da Coreia do Norte, estamos tentando resolvê-la", argumenta ele. "Para isso, é preciso mudar a natureza do país." "Se eu fosse um general americano, estaria perguntando 'quanto custa isso? E, na verdade, esse é um bom uso dos nossos recursos'". Quem deve pagar a conta? A questão que permanece é: quem deve financiar esse trabalho? Alguns questionam por que ele recaiu quase inteiramente sobre os EUA. Uma solução poderia ser a Coreia do Sul pagar a conta, mas a questão da Coreia do Norte é fortemente politizada aqui. O partido liberal de oposição tende a tentar melhorar as relações com Pyongyang, o que significa que financiar a guerra de informação é inviável. O candidato do partido nas eleições presidenciais da próxima semana já indicou que desligaria os alto-falantes se eleito. Mesmo assim, Park continua esperançoso. "O lado bom é que o governo norte-coreano não pode entrar na cabeça das pessoas e extrair informações que vêm sendo acumuladas há anos", ressalta. E, com o desenvolvimento das tecnologias, ele está confiante de que a disseminação de informações ficará mais fácil. "A longo prazo, acredito mesmo que isso será o que mudará a Coreia do Norte."
What's Your Reaction?






