Especialistas divergem sobre legislação contra crimes digitais
Brasil tem arcabouço jurídico para cibercrimes, mas especialistas ponderam sobre sua efetividade e apontam possibilidade de melhorias

O crescimento da criminalidade digital no Brasil impôs desafios concretos ao sistema jurídico. Investigações envolvendo golpes em larga escala, vazamento de dados, aliciamento de menores, perseguições on-line e redes que propagam discursos de ódio se tornaram parte da rotina de quem atua no enfrentamento a crimes cometidos por meio da internet.
Para esse combate, o país conta hoje com um conjunto de normas que, segundo parte dos especialistas ouvidos pela coluna, são suficientes para enfrentar essas novas modalidades. Outros, no entanto, apontam lacunas importantes na legislação, que ainda não acompanham as dinâmicas específicas do ambiente digital, especialmente quanto ao uso da Inteligência Artificial.
A base legal brasileira para lidar com crimes cibernéticos é formada por diferentes leis que vêm sendo atualizadas ao longo dos anos. O Código Penal, por exemplo, já prevê condutas como invasão de dispositivo informático e divulgação, venda ou exposição de imagens íntimas como nudez, sexo ou pornografia sem consentimento da vítima.
A chamada Lei Carolina Dieckmann, sancionada em 2012, foi um marco ao tipificar a invasão de sistemas e o acesso indevido a dados pessoais. Já o Marco Civil da Internet, de 2014, definiu princípios para o uso da rede no país e estabeleceu regras para guarda de registros e atuação de provedores.
Em seguida, a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) reforçou a responsabilidade de empresas no tratamento de informações pessoais, inclusive prevendo sanções em casos de vazamento.
Apesar desse conjunto de normas -cujo rol também engloba outros diversos dispositivos -especialistas apontam que ainda existem lacunas importantes. Um dos pontos citados é a dificuldade em aplicar a legislação existente a situações complexas e tecnicamente sofisticadas.
“Considerando a gravidade do que a gente está vendo, e a massividade, é preciso avançar mais rápido do que está avançando”, diz a advogada Flávia Pietri especialista em Direito Digital e Proteção de Dados.
Ela avalia que as leis atuais contemplam muitas condutas ligadas a cibercrimes, mas não todas. Ela demonstra preocupação, por exemplo, com o avanço da Inteligência Artificial como mecanismo criminoso e que ainda carece de tipificações.
“O uso de todas as IAs aumentou de uma forma muito exponencial, e com certeza em relação aos crimes também estão sendo utilizados da mesma maneira exponencial. E aí a gente tem uma das maiores lacunas, ao meu ver, que é essa falta de regramento específico em relação às IAs”, diz Flávia.
Michele Prado, fundadora do Stop Hate Brasil e pesquisadora da radicalização on-line, ressalta outra limitação: a dificuldade, por vezes enfrentada pela justiça, de compreender a dinâmica de grupos e redes extremistas dentro da internet. São essas comunidades que normalmente estão envolvidas em crimes contra crianças e adolescentes no ambiente digital.
“No Brasil a gente tem muitas lacunas legais nesse campo. Também o entendimento do que é radicalização on-line, do que é o extremismo violento on-line, o terrorismo on-line, etc. Muitas lacunas. E outra coisa é que o Brasil é um país com muitas vulnerabilidades sociais, e essas redes focam no recrutamento de crianças e adolescentes em vulnerabilidade social”, afirmou à coluna.
Para casos envolvendo menores de idade, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) estabelece dispositivos de proteção específicos, enquanto a Lei 13.441/2017 permite a infiltração de agentes em redes digitais para investigar crimes como aliciamento e abuso -estratégia que tem feito parte do dia a dia de autoridades envolvidas em apurações desse tipo.
Em 2023, o Brasil também aderiu à Convenção de Budapeste, tratado internacional que fortalece a cooperação entre países no combate a crimes cibernéticos e facilita a obtenção de provas em investigações transnacionais.
O tratado, na visão de Flávia Pietri, foi uma das maiores conquistas dos últimos anos para o Brasil, principalmente no campo de pornografia infantil. Ela também ressalta o teor transnacional da proposta.
“A grande estrela dessa convenção é abordar a pornografia infantil de uma maneira mais contundente. E é interessante ter em mente essa convenção foi ratificada por muitos outros países, portanto tem essa fluidez internacional, de entender que o que está sendo considerado, também aqui é considerado em outros países. Justamente porque a internet não tem fronteira”, afirma.
Para Luisa Watanabe, advogada criminalista, embora concorde que há brechas na legislação, especialmente em se tratando de inovações tecnológicas como a IA, ela entende que a existência dessas lacunas é parte da própria natureza de um arcabouço legal.
“O direito é um fenômeno social, então as coisas vão acontecendo e o direito tem que correr para alcançar tudo isso e acabar regulamentando e, no âmbito criminal, trazendo medidas para coibir, eventualmente, e tipificando algumas condutas ou aumentando a pena de outras”, afirma.
“Em especial, agora, se a gente parar para falar de uso de inteligência artificial, que o Brasil, se comparado aos países europeus, a gente está atrasado nessa regulação. Então, vai existir, existe de fato um gap, mas a gente não pode dizer que o nosso país não tem um arcabouço legislativo”, pondera.
De forma similar, o coordenador do Laboratório de Operações Cibernéticas (Ciberlab) do Ministério da Justiça, Alesandro Barreto, está igualmente de acordo que as leis atuais dão conta de coibir as práticas ilícitas vistas no ambiente digital.
“Nós temos leis, temos o nosso arcabouço legislativo. E ele é bem completo e robusto. E, assim, nós que estamos aqui nesse dia a dia, e não temos sentido falta”, disse em referência ao dia a dia na investigação de crimes cibernéticos enfrentada no Ciberlab.
Ele reforça o argumento com uma analogia próxima à rotina: “Suponha que você tem um carro elétrico e ele dê pane e cause um acidente. Tem lei para isso, específica para carros elétrico? Não. E a gente precisa fazer isso? Não. Porque temos uma lei de 1990, o código de defesa ao consumidor, que fala na responsabilidade da prestação de serviços”, afirma.
As divergências entre especialistas também esbarra no papel das punições previstas em lei. Uma das questões citadas por autoridades quanto às punições aplicadas em casos de crimes digitais é a alta incidência de menores que, mesmo jovens, já perpetram uma série de crimes na internet.
Segundo explica Lisandrea Colabuono, coordenadora do Núcleo de Operações e Articulações Digitais (Noad) da Polícia Civil de São Paulo, muitos dos infratores são menores que. Nesses casos, apesar de responder pelos atos, as sanções aplicáveis são, por exemplo, internação ou acompanhamento psicológico.
“Eles voltam como heróis. E como eles já passaram, eles inventam histórias. Temos casos que inclusive, o menor foi apreendido novamente por conta disso [cibercrimes]. Ele volta contando que na Fundação Casa, onde ele estava, ele era servido como rei e os demais acreditam.”, relata Colabuono.
Já para casos envolvendo maiores de idade, embora não seja uma opinião unânime, Flávia Pietri argumenta que a legislação ainda não trata esses crimes com o devido peso, e defende penas mais severas em certas situações.
“Para uma pena de reclusão de 1 a 3 anos, a gente tem uma série de benefícios dentro da legislação, que você vai alterar esse regime de reclusão para semiaberto, enfim, vai acontecer um monte de coisa.
Por outro lado, Paulo Klein, advogado criminalista, tende a pensar de forma diversa. Segundo ele, o aumento de penas não contribui de forma efetiva para o combate aos crimes, inclusive os digitais, e a solução para o problema vivido atualmente no Brasil deve ir além disso.
“A gente precisa discutir educação e prevenção, porque repressão, aumento de pena, nunca foi e nunca será meio de evitar que crimes sejam praticados. Isso é uma falácia. Isso é uma coisa que a população, a sociedade movida gosta de ouvir, mas na prática é algo que não funciona”, afirma.
“Quem é criminoso não vai deixar de praticar o crime porque a pena é alta ou baixa. Criminoso é criminoso. Eu não acredito no aumento de pena ou na criação de novos tipos de penas como solução para esse problema que a gente vive hoje. A gente tem que mudar nossos paradigmas de educação”, reitera.
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