O ALIENÍGENA (PARTE XXX)
O alienígena (Parte XXX) Clauder Arcanjo* Ulisses e as sereias, de John William Waterhouse. Nestes tempos de hoje, em que a comunicação toma ares de instantaneidade, eis que alguns leitores me endereçam mensagens sobre esta narrativa. A primeira delas me vem da cidade de Curitiba, Paraná, da escritora Lilia Souza. Tomo […]


O alienígena
(Parte XXX)
Clauder Arcanjo*
Ulisses e as sereias, de John William Waterhouse.
Nestes tempos de hoje, em que a comunicação toma ares de instantaneidade, eis que alguns leitores me endereçam mensagens sobre esta narrativa.
A primeira delas me vem da cidade de Curitiba, Paraná, da escritora Lilia Souza. Tomo a liberdade de dividi-la com você, caro leitor:
Clauder,
E me diga, essa interessante e enigmática obra de Jan von Eyck, que usou como ilustração. Buscou-a como representante de arte de período gótico? Ou haveria “morcegos e mafagafinhos” a saírem de seus recônditos? Percebeu quanto se reflete no espelho emoldurado na parede de fundo? E que não aparece na cena retratada… Chegue mais perto.
Boa semana, meu amigo!
Ah! Já foram para Alemanha? Não era no último final de semana?
Beijo.
Lilia
Confesso, perante a Deus e a minha pequena legião de leitores, eu não havia percebido o que Lilia tão bem observara. A sorte me foi parceira. Ou seria o acaso? Fiquemos com mais este mistério.
& & &
Um dia depois, uma nótula me chega da França. Carinhosa mensagem da professora e escritora Sueleide Amorim, potiguar radicada nas terras de Flaubert. Transcrevo-a:
Bom dia, meu caro Escritor,
Passando para dizer que não morri.
Ainda estou aqui, sempre fiel à minha eterna falta de compromisso com minhas leituras…
Ainda bem que vossa senhoria foi avisada!
Surpresa dessa nova incursão morcegal na sua narrativa e curiosa para conhecer o desenrolar dessa estória, ora apimentada pelas peripécias desse calvo-camundongo (chauve-souris, como se diz em francês).
Com certeza ele emprestará as asas à sua imaginação e evitará ao nobre escritor a vertigem da página vazia.
Desejo-lhe múltiplos voos e sobrevoos pelos rincões licanienses, plenos de vampirescas aventuras!
Abraço amigo!
Sueleide
& & &
E eu, que havia incluído o morcego apenas para encerrar um capítulo no qual tinha pressa de pôr-lhe um ponto final, agora haverei de me virar.
Você me pergunta por quê?
Porque não posso faltar com Lilia e Sueleide. Sugestões ou pedido dessas duas por si só me bastam, comprometendo-me.
Verei o que posso fazer.
Silêncio aí, leitor ciumento, preciso de um tempo (e de paz) para meter mais diatribes góticas nesta noveleta alienígena.
& & &
…
& & &
As reticências anteriores, se expressadas em tempo, eu não saberia transformá-las. Dois dias, três dias?… Porém, se traduzidas em sofrimento de escritor, admito, valeria por uma longa e forte dor de dente. Daquelas que varam uma noite, transformando-a ao limite do infinito.
& & &
Quando me encontrava ainda sob o efeito do sofrimento da página gótica em branco, o amigo Ramon Ferrari me pede que leia um poema do grego Konstantinos Kaváfis.
Leio e releio os versos de Kaváfis:
ÍTACA
Konstantinos Kaváfis (1863-1933)
Quando partires em viagem para Ítaca
faz votos para que seja longo o caminho,
pleno de aventuras, pleno de conhecimentos.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o feroz Poseidon, não os temas,
tais seres em teu caminho jamais encontrarás,
se teu pensamento é elevado, se rara
emoção aflora teu espírito e teu corpo.
Os Lestrigões e os Ciclopes,
o irascível Poseidon, não os encontrarás,
se não os levas em tua alma,
se tua alma não os ergue diante de ti.
Faz votos de que seja longo o caminho.
Que numerosas sejam as manhãs estivais,
nas quais, com que prazer, com que alegria,
entrarás em portos vistos pela primeira vez;
para em mercados fenícios
e adquire as belas mercadorias,
nácares e corais, âmbares e ébanos
e perfumes voluptuosos de toda espécie,
e a maior quantidade possível de voluptuosos perfumes;
vai a numerosas cidades egípcias,
aprende, aprende sem cessar dos instruídos.
Guarda sempre Ítaca em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Mas não apresses absolutamente tua viagem.
É melhor que dure muitos anos
e que, já velho, ancores na ilha,
rico com tudo que ganhaste no caminho,
sem esperar que Ítaca te dê riqueza.
Ítaca deu-te a bela viagem.
Sem ela não te porias a caminho.
Nada mais tem a dar-te.
Embora a encontres pobre, Ítaca não te enganou.
Sábio assim como te tornaste, com tanta experiência,
já deves ter compreendido o que significam as Ítacas
(Tradução: Isis Borges B. da Fonseca: Poemas de Konstantinos Kaváfis, São Paulo, Odysseus, 2006, p. 100-3)
Ítaca, no entanto, não me acode.
Tiro a cera das orelhas; e fico, em pleno verão da Alemanha, à espera da minha musa.
Nada.
Parafraseio Kaváfis:
Guarda sempre Licânia em teu pensamento.
É teu destino aí chegar.
Nada. Nada.
Será que minha musa se recusa (minhas desculpas pela pobre rima) a socorrer-me tão longe de Ítaca-Licânia? Será que a deixei em solo pátrio?
& & &
— Não, não!… Lá vem um morcego alemão! Socorro! Socorro!
Em grande desespero, corro de volta para o hotel.
A recepcionista, ao me ver entrar em tão flagrante aflição, tenta ajudar-me:
— Ganz ruhig, mein Herr. Kann ich Ihnen helfen?
Ao apontar na direção do tal morcego, a senhorita sorri e me explica. Desta vez em inglês:
— It’s a bird. In this case, a crow. Very common around here.
Meu filho Mateus vem ao meu encontro:
— Com medo de um corvo, papai? Você que tanto recitava para mim o poema “O corvo”, de Edgar Allan Poe! Nevermore!
Melhor ficar por aqui. Não tenho nervos para conceber uma página sequer de literatura gótica em solo germânico.
Quando de volta ao Brasil, veremos.
— Mais luz!
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
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