Sem blindagem e sem anistia (por Mary Zaidan)
Se a Casa do Povo não tem escrúpulos em defender o indefensável, a democracia está em perigo

Sem cerimônia para o escárnio, a maior parte das excelências da Câmara dos Deputados não para de agir contra o país. Não bastasse a aprovação da PEC da Blindagem, popularizada como PEC da Bandidagem, insistem na anistia para golpistas, rebatizada como PL da dosimetria, que, em vez de perdão, propõe reduzir as penas daqueles que atentaram contra o Estado. Um engodo travestido de “pacificação” que, além de não acalmar os ânimos do bolsonarismo, que só admite o ex livre da cadeia e elegível, insulta os brasileiros, majoritariamente contrários à anistia, mesmo que limitada aos ignaros úteis do 8 de janeiro.
Depois de ter sua urgência aprovada às pressas na Câmara, a anistia aos golpistas, tanto para os vândalos quanto para os mentores do golpe, incluindo Jair Bolsonaro e militares estrelados, tem previsão de ser votada ainda nesta semana. Tudo tão surreal que o texto do projeto não existe.
O relator, deputado Paulinho da Força (Solidariedade-SP), danou a falar sobre uma proposta de redução de penas depois de ressuscitar o ex-presidente Michel Temer, que quer reeditar a lenga-lenga de “pacto republicano” – historicamente fadado ao insucesso. A primeira rodada de conversas incluiu também, sabe-se lá por qual motivo, o deputado mineiro Aécio Neves (PSDB), felicíssimo de voltar à ribalta, e deixou no ar a sensação de que se costurava um acordo com o STF. Os ministros do Supremo não negam nem confirmam.
O novo projeto, diz o relator, preservaria as penas por tentativa de abolição do Estado de direito e golpe de Estado, reduzindo o tempo de detenção para os delitos de organização criminosa, dano qualificado por violência e deterioração do patrimônio público. No caso desse último, Paulinho se arvorou a julgador, inocentando Bolsonaro. “Que eu saiba, ele [Bolsonaro] não tacou pedra em nenhum lugar, nenhum prédio público. Pode ter mandado? Pode ser. Mas não sei se ele mandou. Esse é um crime que provavelmente vai ser reduzido”, disse.
Não cabe ao Congresso fixar penas para condenados. Para alterá-las é necessário introduzi-las no Código Penal, este sim, mutável a partir de maioria parlamentar, com abrangência geral. Ou seja, mexer na dosimetria unicamente para os golpistas só é possível em um projeto de anistia. O resto é papo para boi dormir que os “pacificadores” da vez tentam enfiar goela abaixo do país como se tratasse exclusivamente de redução da punição.
Mesmo sem texto, o que já veio à tona da proposta conseguiu ser unânime em contestações. A esquerda e os governistas não querem saber de anistia, ainda que, para o desalento de alguns, o presidente Lula tenha falado em favor de alívio para os condenados pelo 8 de Janeiro. Entre os bolsonaristas, o repúdio é total. Se a anistia vier assim, ligth, eles pretendem apresentar emendas diretamente ao plenário para livrar Bolsonaro ou, no mínimo, garantir o cumprimento da pena em casa, ponto no qual contariam com o apoio do Centrão.
Donos da Câmara, os integrantes do Centrão impõem o que querem. Foi deles a maioria dada à PEC da bandidagem – ainda que com 12 votos do PT – e à urgência urgentíssima para o PL da anistia. Gostariam de amenizar as penas de todos os golpistas, preferencialmente sem reabilitar a elegibilidade de Bolsonaro, de quem apenas desejam o endosso ao candidato de seus sonhos, o governador paulista Tarcísio de Freitas.
Além de ter colocado o Executivo no cabresto com a criação das emendas secretas inauguradas no governo Bolsonaro e ampliadas ano a ano por Lula, o Centrão também é expert em perdoar crimes, em especial os auto-cometidos. Conseguiu mudar a lei popular da ficha-limpa, alterando o início da contagem de oito anos de inelegibilidade a condenados, e impor a espetacular anistia aos partidos políticos que descumpriram leis de cotas em eleições anteriores a 2024, suspendendo multas e criando imunidade tributária às agremiações.
Aprovada no ano passado, a emenda constitucional de perdão às dívidas partidárias, assim como a PEC da blindagem, também contou com o apoio da esquerda.
Uma festa de impunidade que envergonha o país. Mas que nem de longe importa aos parlamentares que, via fartos financiamentos dos fundos partidários e eleitorais, superiores a R$ 6 bilhões, e das gordas emendas, acima de de R$ 16 bilhões de dinheiro do pagador de impostos, giram as engrenagens de uma máquina que os elegem e reelegem mesmo sem dar qualquer bola ao eleitor.
O crucial de se ter representantes tão divorciados do país é fermentar a cultura de desprezo e rejeição ao Parlamento. Não à toa, 78% dos entrevistados pelo Datafolha em agosto deste ano consideram que os congressistas pensam mais em si do que nos interesses da população. Se a Casa do Povo não tem escrúpulos em defender o indefensável e só olha para o seu umbigo, a democracia está em perigo. Estamos em perigo.
Mary Zaidan é jornalista
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