Testemunha de Jeová: os relatos de mães e filhos separados pela religião

Ex-testemunhas denunciam que igreja orienta membros a cortarem contato com ex-fiéis, e até com a própria família, como “ato de bondade”

Jun 10, 2025 - 04:00
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Testemunha de Jeová: os relatos de mães e filhos separados pela religião

A brasiliense Lara do Prado de Sousa (foto em destaque), de 28 anos, carrega marcas profundas de uma ruptura que mudou sua vida. Criada como Testemunha de Jeová, foi batizada ainda na adolescência. Mas, ao começar a questionar as doutrinas da religião e assumir sua bissexualidade, foi expulsa da congregação. A desassociação não significou apenas o rompimento com a crença: também lhe custou a relação com a própria mãe, que permanece fiel ao grupo religioso.

A história de Lara se assemelha com a de diversas outras ex-Testemunhas de Jeová que perderam vínculos com a família por conta do dogma. Em muitos casos, amigos e familiares são orientados pela própria religião a cortar todos os laços com pessoas desassociadas, as levando ao isolamento.

Entre os membros e ex-membros da religião, a desassociação é orientada oficialmente pela organização. Em uma edição da revista A Sentinela, publicada pela própria instituição, a recomendação é clara: “Infelizmente, alguns cometem pecados graves e precisam ser removidos da congregação. Nesses casos, nós ‘paramos de ter convivência’ com a pessoa. Isso ajuda a manter a congregação pura”.

A publicação sustenta que interromper o contato com ex-membros seria, na verdade, um ato de “bondade”, pois poderia “incentivá-los a retornar à fé”. Na prática, porém, essa orientação tem resultado em relatos marcados por abandono, isolamento e sofrimento emocional.

“Quando minha mãe engravidou de mim, ela já era da religião. Então, desde pequena, eu frequentava todas as reuniões. Foi muito fácil para mim entrar de cabeça, porque era o único ambiente religioso que tive acesso. Durante esse período, eu acreditava em tudo que era ensinado lá dentro”, conta Lara, que é designer de cílios.

No Distrito Federal, existem cerca de 200 congregações das Testemunhas de Jeová. Estas são unidades locais onde os membros se reúnem para estudos bíblicos e outros eventos.

Por ser a única das filhas que decidiu se batizar, a religião fez com que Lara e a sua mãe se unissem ainda mais. “Nós éramos muito próximas, íamos para as reuniões sempre juntas, fazíamos trabalhos de pregação de porta em porta”, relembra.

Conforme foi envelhecendo, a autônoma começou a questionar as diretrizes da religião, enquanto lidava com dúvidas sobre sua sexualidade. Isso porque, dentro da denominação, a homossexualidade é considerada como pecado. Ao assumir sua orientação sexual, ela acabou sendo expulsa da igreja por estar em “desacordo com as regras”. 8 imagensEx-Testemunha de Jeová frequentava Salão do Reino na Expansão do Setor O, em Ceilândia  Há cinco anos, Lara foi expulsa da igreja A expulsão aconteceu após Lara se assumir bissexual Hoje ela tenta reconstruir  a vida e os laços com a família após sair da igrejaA jovem faz parte do Movimento de Ajuda às Vítimas das Testemunhas de Jeová Fechar modal.1 de 8

Brasiliense Lara do Prado de Sousa, de 28 anos,Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto2 de 8

Ex-Testemunha de Jeová frequentava Salão do Reino na Expansão do Setor O, em Ceilândia Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto3 de 8

Há cinco anos, Lara foi expulsa da igreja Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto4 de 8

A expulsão aconteceu após Lara se assumir bissexual Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto5 de 8

Hoje ela tenta reconstruir a vida e os laços com a família após sair da igreja Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto6 de 8

A jovem faz parte do Movimento de Ajuda às Vítimas das Testemunhas de Jeová Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto7 de 8

A homossexualidade é vista como um pecado dentro da organização Testemunhas de Jeová Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto8 de 8

Desde que foi saiu da igreja, Lara não tem mais contato com a mãe, que permanece fiel à religião Hugo Barreto/Metrópoles @hugobarretophoto

“Menor contato possível”

À época com 23 anos, Lara ainda morava na casa de sua mãe. A orientação da instituição é que a família corte gradativamente o vínculo com o ex-membro e que mantenha o menor contato possível. A partir do momento em que a pessoa sai de casa, o laço deve ser interrompido por completo.

“Momentos simples como sair para assistir um filme ou viajar juntas foram diminuindo, ao ponto de que a gente não se vê mais. Ainda mantemos algum contato por conta da ajuda financeira que dou a ela. De tempos em tempos, ainda recebo uma mensagem da minha mãe dizendo que me ama”, diz.

De acordo com a designer de cílios, nos últimos dois anos, ela viu a mãe pessoalmente em apenas três ocasiões. “No caso das minhas irmãs mais velhas, como elas nunca se batizaram, não existe essa pressão da igreja para cortar o contato. O tratamento com elas continua o mesmo, mas eu, por ter sido expulsa, já não posso estar próxima”, lamenta.

Antes da desassociação, a mãe de Lara ainda tentou convencê-la de não abandonar a religião, mas decidida a seguir outro caminho, a autônoma sofreu por antecipação por prever que a mãe se afastaria dela.

“Eles ensinam que você não pode amar nada e nem ninguém acima de Deus. E aí, quando eles falam Deus, inclui todas as regras da religião. Você tem que botar esses dogmas acima até mesmo dos seus próprios sentimentos. E, como minha mãe sempre foi uma mulher muito devota, sabia que ela ia seguir à risca a regra do ostracismo, de evitar a pessoa que foi expulsa”, detalha.

“Orfã de mãe viva”

Para Lara, o sentimento é de como se fosse órfã de uma mãe viva. “Eu chorava muitas noites seguidas, só de imaginar o fato de que eu perderia minha mãe. É complicado, porque eu não posso ter ela presente na minha vida pessoal. Sofri com a morte do meu pai, e agora lido com o luto pela morte da relação com minha mãe. Sei que, se um dia eu decidir me casar, ela não vai estar presente na cerimônia, porque a religião dela proíbe”, desabafa.

A autônoma acredita que a genitora também sofre com o distanciamento. Apesar da regra, a mulher sempre declarou seu amor à filha, nas poucas interações que tiveram.

“A pessoa que está lá dentro, ela se distancia achando que está fazendo a vontade de Deus, só que faz isso sofrendo, com dor no coração. É quase como se o parente que saiu tivesse morrido”, explica.

Hoje, longe do grupo, ela relata o processo de reconstrução dos laços afetivos com irmãs, tios e tias, vínculos que ficaram fragilizados pelo isolamento imposto. Segundo ela, dentro da religião, qualquer pessoa com uma fé diferente é vista como uma “má companhia” e deve ser evitada, inclusive familiares.

Segundo a ex-integrante, romper o silêncio sobre práticas abusivas dentro da igreja é necessário. Ela descreve o ostracismo como uma das formas mais cruéis de controle utilizadas pela instituição. “Quando a pessoa entra, é incentivada a se afastar de todos que não compartilham da mesma fé. E, ao sair, perde completamente sua rede de apoio”, afirma.

De acordo com seu relato, esse rompimento repentino leva muitos ex-membros ao desamparo emocional. “É comum que quem sai enfrente crises profundas, incluindo pensamentos suicidas, por se sentir isolado, culpado e sem esperança. A pessoa é levada a acreditar que está condenada por contrariar a vontade de Deus”, alega. table visualization

 

Mãe ex-Testemunha de Jeová

A história de Jacira da Silva Amaral, 72 anos, ganhou repercussão após ela aparecer em um protesto na Avenida Paulista, região central de São Paulo, com um cartaz em mãos no qual expôs que, após 40 anos de dedicação à religião Testemunhas de Jeová, foi orientada a “abandonar a própria filha”. A manifestação aconteceu em maio deste ano.

Junt0 com um grupo de outras mulheres ex-seguidoras da doutrina, Jacira denunciou a separação de mães e filhos que seria aconselhada pela religião.

Moradora de Brasília, a mulher contou que recebeu a recomendação após a filha se divorciar do marido. “É um fardo muito grande para uma mãe que sai da religião e os filhos ficam, porque sabemos que o corte de contato é incentivado. Minha filha, por exemplo, foi abandonada pelo marido e os anciãos queriam que eu a abandonasse. Falei que jamais iria abandonar minha filha, pelo que ela estava passando”, contou.

Assista ao relato:

Os três filhos de Jacira — dois homens e uma mulher — foram criados dentro da religião. Dois deles chegaram a se batizar, mas apenas a filha continuou como Testemunha de Jeová após adulta.

A saída da costureira e da filha dela da entidade aconteceu em 2021. A mulher alega que sofreu retaliações dentro da denominação religiosa após acolher a filha que havia se separado do companheiro.

“Foi nesse contexto que dois anciãos me chamaram para conversar. Primeiro, falaram com minha filha, depois comigo. Perguntaram se ela iria morar comigo, e eu confirmei que sim. Em consequência disso, os anciãos decidiram retirar meu privilégio de pioneira regular — na época, eu dedicava 70 horas por mês à atividade”, relembra. 6 imagensFoto antiga, da época em que integrava a religião, em que posa com a filhaA mulher deixou a religião em 2021 Ela foi Testemunha de Jeová por mais de 40 anos  Jacira exibe termo, que carregava consigo na época da religião, em que se negava a receber transfusão de sangue Ela também é membro do Movimento de Ajuda às Vítimas das Testemunhas de Jeová (MAV-TJ)Fechar modal.1 de 6

Jacira da Silva Amaral, ex-Testemunha de Jeová, segura cartaz que usa nos protestos contra a religiãoVinicius Schmidt/Metropoles2 de 6

Foto antiga, da época em que integrava a religião, em que posa com a filhaVinicius Schmidt/Metropoles3 de 6

A mulher deixou a religião em 2021 Vinicius Schmidt/Metropoles4 de 6

Ela foi Testemunha de Jeová por mais de 40 anos Vinicius Schmidt/Metropoles5 de 6

Jacira exibe termo, que carregava consigo na época da religião, em que se negava a receber transfusão de sangue Vinicius Schmidt/Metropoles6 de 6

Ela também é membro do Movimento de Ajuda às Vítimas das Testemunhas de Jeová (MAV-TJ)Vinicius Schmidt/Metropoles

À época, Jacira fazia parte de uma congregação de língua francesa em Brasília. “Aquilo para mim foi um choque. Eu achava que estava fazendo aquilo para Deus. Não estava cometendo nenhum erro. Não ia abandonar minha filha. Estava tentando fazer mais por Ele”, conta.

Depois do episódio, a costureira se mudou para Santa Catarina com a filha. Lá, novamente foi orientada a mudar de congregação — desta vez, para a de língua portuguesa. Apesar de aceitar a mudança, ela afirma que sentiu uma postura de indiferença por parte dos novos líderes.

Em fevereiro de 2021, um novo fator reforçou sua decisão de se desligar definitivamente da denominação. Ao assistir ao depoimento de um membro do corpo governante da religião, ela afirma ter identificado uma mentira. O episódio foi decisivo para a saída de Jacira e da filha.

“O objetivo dessa organização é separar família. Quando acontece qualquer coisa, eles procuram dar orientação aos pais para abandonar os filhos, ou dos filhos abandonarem os pais que saíram da igreja. Não há saída honrosa dessa organização”, acusa.

Após se tornar ex-Testemunha de Jeová, Jacira decidiu virar ativista e denunciar a religião. “Percebi que fui enganada. Hoje, tenho o dever de alertar sobre o quão perigosa é essa organização, porque ela tem feito muito estrago na vida das pessoas. É uma organização com fachada de religião. Essa doutrina tem que mudar”, alega.

Vítimas das Testemunhas de Jeová

Criado em janeiro de 2024 por ex-membros da denominação religiosa, o Movimento de Ajuda às Vítimas das Testemunhas de Jeová (MAV-TJ) surge como uma frente suprapartidária com o objetivo de combater, por vias legais e sociais, o que considera práticas discriminatórias e abusivas por parte da igreja.

“Queremos a revogação de todas as regras que provocam sofrimento, exclusão e até suicídios entre ex-integrantes. A religião está incentivando o rompimento de laços familiares com base em doutrinas que violam a dignidade humana”, afirma Yann Rodrigues, líder do movimento, que diz ter sido discriminado pela própria família desde os 15 anos, ao decidir deixar a religião.

O MAV-TJ organiza manifestações e denúncias públicas em cidades como São Paulo, Brasília e Rio de Janeiro, buscando sensibilizar autoridades e legisladores para os impactos causados por essas doutrinas.

O grupo também planeja ações judiciais contra a Torre de Vigia no Brasil, exigindo a retirada de conteúdos considerados ofensivos e discriminatórios do site oficial da religião e das publicações distribuídas nas ruas.

“Sempre que pudemos, indicamos psicólogos que apoiam a nossa causa e que atuam com valores sociais, para ajudar essas pessoas a conviver com a dor da separação familiar, pensamentos suicidas e de auto rejeição, causada pela igreja”, conta Yann.

Posicionamento

Metrópoles entrou em contato com a assessoria de imprensa das Testemunhas de Jeová para comentar sobre o dogma e aguarda retorno.

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