Violência contra mulheres negras sustenta desigualdade no Brasil
A violência contra mulheres negras não persiste por falha moral isolada, mas por decisões repetidas de abandono
Desde o alvorecer da colonização, o Brasil construiu sua sociedade com base na devastação das vidas de mulheres negras e indígenas, submetidas ao estupro e à opressão como ferramenta de dominação. Esse legado violento não foi abolido; ao contrário, tornou-se naturalizado e atravessa gerações e molda desigualdades que hoje marcam a violência de gênero com forte viés racial. Quando olhamos para os dados recentes, percebemos que essa herança colonial permanece viva e letal.
A mais recente DataSenado, em parceria com o Observatório da Mulher contra a Violência, entrevistou, entre agosto e setembro de 2023, 13.977 mulheres autodeclaradas pretas ou pardas, com 16 anos ou mais, em todas as unidades da federação. Em 2022, dos mais de 202 mil casos de violência atendidos pelo sistema de saúde, 55% eram mulheres negras. Dos homicídios de mulheres com informações de raça registradas, 67% foram de negras.
Na dimensão doméstica, o ciclo de vulnerabilidade e violência é evidente. Entre as mulheres negras que relataram violência doméstica, 66% declararam não ter renda própria ou renda insuficiente. Dessas, 85% vivem com o agressor, situação que se agrava quando há filhos menores: 80% dessas mães continuam morando com quem as agride. O impacto da dependência econômica reflete-se no abandono da busca por proteção: apenas 30% procuraram assistência de saúde depois de episódios graves de violência.
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Esses números não podem ser tratados como estatísticas isoladas. Eles denunciam uma cultura enraizada desde o Brasil colonial: o estupro de mulheres negras e indígenas não foi um ato isolado, mas um instrumento fundante da opressão colonial e patriarcal. Essa violência institucionalizada construiu e naturalizou um olhar racista e misógino sobre essas mulheres, olhar que seguimos reproduzindo até hoje, quando permitimos que a violência doméstica e o feminicídio sejam quase invisíveis para grande parte da sociedade.
O que esses dados exigem não é comoção passageira, mas reposicionamento político. A violência contra mulheres negras não persiste por falha moral isolada, mas por decisões repetidas de abandono. Ela se mantém porque faltam políticas consistentes, orçamento continuado, proteção eficiente, acompanhamento real e autonomia econômica para quem vive na base da pirâmide social. Quando o Estado falha, a violência se torna previsível. E quando a violência se torna previsível, ela passa a ser tolerada.
O pacto que se impõe não é simbólico, nem retórico. É material. Exige que a proteção funcione antes da agressão virar estatística. Exige renda, acesso à saúde, moradia digna, acompanhamento jurídico e psicológico continuado. Exige que a vida dessas mulheres deixe de ser tratada como dano colateral da desigualdade. Enquanto o poder público atuar apenas na reação e não na prevenção, continuará administrando mortes em vez de proteger vidas.
Se essa herança não for interrompida de forma objetiva, com política pública e compromisso real, seguiremos reproduzindo a lógica que autoriza a violência desde a Colônia. Romper esse ciclo não é um gesto de boa vontade. É obrigação institucional, é responsabilidade histórica, é dever civilizatório.
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