Corte milionário interrompe projeto inédito com DNA brasiliense na UnB
Pesquisadores criaram a primeira luva cirúrgica hipoalergênica à base de látex do mundo. Projeto está parado por corte de verba da FAPDF

Pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB) desenvolveram uma tecnologia inédita no mundo para a produção de materiais hipoalergênicos à base de látex. A inovação promissora para a área da saúde tem potencial para aplicação em camisinhas, luvas cirúrgicas, cateteres e outros itens médicos. Batizado de Látex-Tan, o projeto, no entanto, está paralisado desde o fim do ano passado por falta de repasses da Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF), sem previsão de retomada.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que, em todo o mundo, cerca de 145 milhões de pessoas têm alergia ou hipersensibilidade ao látex. Pensando nesse problema de saúde internacional, a pesquisa pioneira do Instituto de Química da UnB desenvolveu um método inovador para produção de látex hipoalergênico.
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Professor Floriano Pastore, do Instituto de Química (IQ) da Universidade de Brasília (UnB), coordenador do projeto Látex-Tan, Vinicius Schmidt/Metropoles2 de 7
Grupo desenvolveu luvas cirurgicas hipoalergênicas através do uso do tanino vegetal, ao invés da amônia, no tratamento do látex natural da borrachaVinicius Schmidt/Metropoles3 de 7
O produto foi concebido a partir de pesquisas iniciadas no doutorado do professor Pastore, em 2013Vinicius Schmidt/Metropoles4 de 7
Uma micro fábrica foi instalada num galpão do Laboratório de Tecnologias de Borracha para a Amazônia (Tecbor), ao lado do Hospital Veterinário da UnB, para a confecção de luvas de látex Vinicius Schmidt/Metropoles5 de 7
Pesquisa está parada por falta de repasse de recursos da FAPDF Vinicius Schmidt/Metropoles6 de 7
Segundo ele, a solução resolve duas problemáticas que se mostram aos pesquisadores há mais de cinco décadas: a da alergenicidade e a do uso da amôniaVinicius Schmidt/Metropoles7 de 7
O aditivo de tanino adotado no processo foi patenteado pela UnB no Brasil e em outros paísesVinicius Schmidt/Metropoles
O corte de cerca de R$ 45 milhões do orçamento de 2025 da fundação afetou dezenas de projetos aprovados em todas as chamadas do Edital 06/2026 FAPDF Learning. As pesquisas não foram contempladas com os recursos financeiros que assegurariam seu desenvolvimento, apesar de todas elas terem sido aprovadas e publicadas no Diário Oficial do DF.
A FAPDF é uma entidade com personalidade jurídica de direito privado, sob a forma de fundação pública, vinculada à Secretaria de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação. Sua missão é estimular, apoiar e promover o desenvolvimento científico, tecnológico e de inovação da capital.
A fundação tem direito a 0,5% da Receita Corrente Líquida (RCL) do Governo do Distrito Federal, conforme estabelecido no artigo 195 da Lei Orgânica distrital. Esse percentual corresponde a um orçamento que, em 2024, era de aproximadamente R$ 180 milhões e em 2025 caiu para R$ 135 milhões.
A aplicação de um mecanismo chamado Desvinculação de Receitas dos Estados e Municípios (DREM) reduziu o valor previsto para a FAPDF em 2025. A medida foi adotada para corrigir uma fragilidade operacional no orçamento.
De acordo com os pesquisadores, o corte afeta o funcionamento de laboratórios de pesquisa em todas as áreas de conhecimento, a concessão de bolsas para graduandos, mestrandos e doutorandos, o acolhimento de pesquisadores visitantes do Brasil e do exterior e a produção científica de modo geral, o que inclui a continuação de pesquisas, a geração de patentes, a publicação de artigos e internacionalização da pesquisa.
O Edital 06/2026 FAPDF Learning previa um investimento de R$ 30 milhões para pesquisas nas áreas de biotecnologia, govtechs, tecnologias da informação e comunicação e agronegócio. Uma das pesquisas contempladas nessa seleção foi a desenvolvida pelo Látex-Tan, que deveria ter recebido R$ 809 mil no início deste ano.
Uma publicação no DODF, em março deste ano, atualizou o prazo de vigência do edital até 30 de setembro. A prorrogação gera expectativa aos pesquisadores, que esperam receber recursos da FAPDF até esta data, apesar do atraso comprometer o andamento das atividades científicas.
“Essa prorrogação deu esperança e um tempo um pouco maior para a FAPDF procurar recompor seu orçamento. Então, na medida que houver essa recomposição, há condições da fundação continuar o processo de repasse dos recursos e as pessoas conseguirem finalmente executar os seus projetos”, explica o professor Fernando Oliveira Paulino, um dos representantes da UnB no Conselho Superior da FAPDF.
Látex-Tan sem produção
Os pesquisadores do Látex-Tan desenvolveram um método para produção de materiais hipoalergênicos de látex de borracha natural. Além de não causar alergias, os produtos são mais resistentes. O processo também já foi patenteado.
A solução encontrada consiste da utilização do tanino extraído da casca da árvore Acácia-negra como componente que substitui a amônia na produção do látex. O tanino é capaz de bloquear as proteínas alergênicas que envolvem as partículas de látex e, com isso, pode ser utilizado na produção de itens como luvas cirúrgicas e preservativos.
O produto foi concebido a partir de pesquisas iniciadas no doutorado do professor e coordenador do projeto, Floriano Pastore, em 2013. De lá para cá, outras pesquisas de mestrado e doutorado contribuíram para o avanço do projeto e produção das luvas, a partir de parceria com a Tanac, empresa produtora de extratos vegetais.
No final de 2023, o grupo instalou uma micro fábrica em um galpão do Laboratório de Tecnologias de Borracha para a Amazônia (Tecbor), ao lado do Hospital Veterinário da UnB, para a confecção de luvas de látex com proteção do tanino, o que favorece os testes em escala industrial. Ali, são feitas todas as etapas de produção.
“Essa luva que criamos ninguém no mundo faz. Já estamos na quarta comprovação de que não tem alergênicos. Mas nosso projeto depende da safra do látex. No entanto, nossa produção está parada porque dependemos de verba da FAPDF e não temos mais látex. O projeto que aplicamos nesse edital é para executar um seringal modelo e aumentar em até 40% nossa produtividade de luvas”, conta Floriano.
A expectativa era de que o seringal modelo fosse colocado em prática já no início deste ano. Porém, o grupo teve os planos frustrados ao não receber os recursos da FAPDF. A pesquisa enfrenta um desafio específico devido à sazonalidade da coleta do látex, o que pode comprometer a produção.
“Nós fizemos um esforço grande no final do ano passado para enviar um projeto de pesquisa para concorrer em um edital muito disputado. Queremos dinheiro para trabalhar. Passamos por todo esse processo, para dar continuidade a pesquisa que iniciamos em 2023, e agora estamos sem recurso. A gente começar a desacreditar do edital”, desabafa o professor.
Os testes iniciais já indicam resultados positivos, e o projeto continua com testes clínicos, com a perspectiva de disponibilizar as luvas ao público e ao mercado hospitalar após a conclusão bem-sucedida dos testes clínicos.
Comunidade científica prejudicada
De acordo com a comunidade de pesquisadores, o corte de orçamento da FAPDF sinaliza uma forte redução nos investimentos em ciência e tecnologia e inovação, deixando de cumprir o 0,5% que foi estabelecido como dotação mínima e que passou para apenas 0,37%.
Os representantes do setor alegam que corte recente ameaça a continuidade dos projetos em andamento aprovados em 2024, o cancelamento dos principais editais de fomento de 2025 da FAPDF, a sustentabilidade de milhares de empregos diretos e indiretos vinculados à cadeia de inovação e atraso no desenvolvimento social e matriz de inovação no Distrito federal.
Diante disso, os pesquisadores reivindicam por uma recomposição integral do orçamento da FAPDF no âmbito da revisão da Lei Orçamentária Anual (LOA).
Para o professor Fernando Oliveira Paulino, um dos representantes da UnB no Conselho Superior da FAPDF, a recomposição do orçamento é essencial para as pesquisas e traz benefícios para toda a população da capital do país.
“Os projetos aprovados necessitam de recursos para sua execução. Temos a expectativa de que o GDF, com o apoio da Câmara Legislativa, encontre uma solução para honrar e repassar os orçamentos”, diz.
Paulino também entende que, a exemplo de outras Fundações Estaduais, a FAPDF precisa ter mais estrutura por meio de um quadro estável de funcionários e de editais com planejamento e continuidade.
“É muito importante que a concessão de orçamento da fundação para a pesquisa seja percebida como algo necessário para o dia-a-dia da produção e a aplicação do conhecimento científico na vida cotidiana das pessoas. Não se trata de uma espécie de prêmio para quem coordena as iniciativas. Dinheiro para a pesquisa é um investimento que pode trazer benefícios diretos para a população a curto, médio e longo prazo”, conclui.
Projeto de lei na CLDF
A Comissão de Assuntos Sociais da Câmara Legislativa do Distrito Federal (CLDF) deve votar na quarta-feira (25/6) um projeto de lei que assegura a recomposição orçamentária da FAPDF.
De autoria do deputado Rogério Morro da Cruz e relatoria do deputado Max Maciel, o projeto de lei prevê a recomposição quando sua dotação for reduzida por mecanismos como a Desvinculação de Receitas dos Estados e Municípios (DREM) ou outro instrumento, de modo a garantir o cumprimento do mínimo de 0,5% da Receita Corrente Líquida previsto na Lei Orgânica do DF.
A recomposição prevista no projeto busca justamente garantir que o percentual mínimo estabelecido pela lei seja efetivamente cumprido, preservando a integridade do serviço prestado pela fundação.
Segundo Maciel, a FAPDF desempenha função estratégica na estrutura de prestação de serviços públicos do Distrito Federal ao apoiar projetos de pesquisa indispensáveis ao progresso da ciência, dentre elas, às voltadas as políticas públicas.
“A incidência de mecanismos de desvinculação de receitas sobre sua dotação orçamentária tem comprometido a efetividade de sua atuação. Trata-se de distorção que afeta a execução de políticas públicas baseadas em evidências e, por consequência, a própria capacidade do Estado de responder a desafios sociais estruturais”, argumenta.
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