De ameaça a homicídio: SP registra um crime contra LGBTs a cada 2h

SSP, que não disponibiliza abertamente dados de violência contra LGBTs em SP, diz ter contabilizado 9.370 crimes do tipo entre 2023 e 2024

Agosto 19, 2025 - 03:30
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De ameaça a homicídio: SP registra um crime contra LGBTs a cada 2h

O estado de São Paulo registrou um crime contra LGBTs a cada duas horas, entre 2023 e 2024, indicam dados da Secretaria da Segurança Pública (SSP). Além de crimes contra a vida, as ocorrências incluem delitos de injúria, ameaça e lesão corporal.

A pasta, que informou os dados exclusivamente por nota, contabilizou 5.916 registros de crimes motivados por identidade de gênero ou orientação sexual em 2023. No ano passado, foram 3.454 boletins. O total equivale a 12 ocorrências por dia — ou uma a cada duas horas. A pasta, no entanto, não específica quantas mortes foram causadas por discriminação sexual ou de gênero no estado.

Falta de transparência dificulta entender cenário de violência contra LGBTs

Dados acessados via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela reportagem apontam que, de 68.608 registros de ocorrências de crimes contra a vida, apenas 29 receberam a classificação homofobia/transfobia em 2023. No ano seguinte, de 93.703 registros do tipo, apenas uma recebeu a classificação. Os números são exponencialmente menores do que os informados pela pasta em nota.

O Metrópoles apurou, junto à Polícia Civil de São Paulo, que, mesmo que exista desde 2015 um campo específico nos boletins de ocorrência para identificar crimes motivados por intolerância — incluindo homofobia e transfobia –, a conduta não é amplamente adotada pelos agentes. Segundo fontes ouvidas pela reportagem, a motivação do crime é apurada em inquérito policial, posterior ao registro.

Além disso, as estatísticas relativas à população LGBTQIA+ não estão disponíveis no banco de dados abertos da SSP, o que dificulta a análise do cenário de violência motivada por sexo e gênero em SP.

“Os dados oficiais silenciam diante de mortes que falam alto. Quando o estado de São Paulo aponta apenas um caso de morte por homofobia em 2024 e nenhum em 2025, até agora [de acordo com os resultados da LAI], ele nos convida a crer numa ficção: a de que a LGBTfobia foi extinta”, afirmou Marcelo Oliveira Domingos, coordenador do Observatório de Mortes Violentas LBGT+ do Grupo Gay da Bahia (GGB).

Segundo ele, “retirar o reconhecimento da motivação é apagar o crime do seu contexto social”.

“É transformar a morte de uma travesti em ‘acerto de contas’, a de um homem gay em ‘crime passional’, e a de uma mulher lésbica em ‘tragédia doméstica’. Quando não se nomeia a LGBTfobia, naturaliza-se a barbárie. O assassinato vira estatística genérica e a vítima perde até o direito de morrer pelo que era. É uma forma de assassinato duplo: do corpo e da memória. E mais que isso, impede que políticas públicas específicas sejam formuladas. Como combater o que o estado se recusa a reconhecer?” questiona Domingos.

O que diz a SSP

  • A SSP afirma que “todos os distritos policiais do Estado estão aptos a registrar e investigar crimes contra a população LGBTQIAPN+, e esses casos também podem ser formalizados pela Delegacia da Diversidade Online”.
  • Conforme a pasta, a Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância (Decradi), do Departamento Estadual de Homicídios e de Proteção à Pessoa (DHPP), instaurou 127 inquéritos policiais para apurar crimes de homotransfobia desde 2023, número que corresponde a 1.36% dos 9.370 casos registrados no último biênio.
  • A SSP destaca ainda que a formalização do boletim de ocorrência é fundamental para possibilitar a apuração e responsabilização dos autores, “assim como para garantir a formulação de políticas públicas de enfrentamento à violência e à intolerância”.
  • Ainda de acordo com a nota, “da mesma forma, é essencial que as vítimas informem à Polícia Civil quando o crime ocorre em padrões que levem a crer terem sido motivados por intolerância, em quaisquer de suas modalidades, o que garante maior qualidade de dados desde o registro inicial e, por consequência, estatísticas mais próximas à realidade”.

SP lidera em mortes de LGBTs

De acordo com levantamento feito pelo GGB, organização não governamental pioneira em contabilizar crimes contra a vida de LGBTs, SP lidera em número de mortes de pessoas LGBTQIA+ no Brasil. Foram 34 casos em 2023 e 53 em 2024. Neste ano, até o dia 29 de julho, 19 pessoas no estado foram vítimas fatais de discriminação sexual ou de gênero.

Por ser o estado mais populoso do país, é natural que o território esteja no topo do ranking, mas as razões para essa posição vão além, na visão de Domingos. “São Paulo concentra também grandes fluxos migratórios internos de pessoas LGBTQIA+ expulsas de suas cidades e famílias. É o destino de quem busca liberdade, mas nem sempre encontra acolhimento”, apontou.

Para o coordenador do GGB, o dado revela que “mesmo o lugar que deveria ser porto, muitas vezes, vira palco de violência. A urbanização não nos protege da intolerância; às vezes, a mascara”.

SP foi primeiro estado a criar lei contra homofobia

O mesmo estado que dificulta o acesso aos dados sobre as violências que vitimam a população LGBTQIA+, é também a unidade federativa que criou primeiro no país uma legislação contra a homofobia. Trata-se da Lei nº 10.948, de 2001, de autoria do então deputado estadual Renato Simões (PT), e atual secretário nacional de Participação Social.

A lei pune, de forma administrativa, ”toda manifestação atentatória ou discriminatória praticada contra cidadão homossexual, bissexual ou transgênero”.

O texto legislativo determina como passíveis de punição o cidadão, inclusive os detentores de função pública, civil ou militar, e toda organização social ou empresa, com ou sem fins lucrativos, de caráter privado ou público, instaladas em SP.

A pena prevê advertência e multa, que aumenta em caso de reincidência, além da suspensão da licença estadual para funcionamento de estabelecimentos por 30 dias e a cassação do alvará de funcionamento. No caso de funcionários públicos, pode ocorrer a perda do cargo.

Ao Metrópoles, Simões lamentou que, quase 25 anos depois, a lei que escreveu continue sendo uma referência ao combate à homofobia no estado.

Ele destacou que cabe ao Congresso Nacional criar uma legislação “robusta” sobre o tema. A Câmara e o Senado, no entanto, “vem se negando a legislar e esse vazio só foi preenchido por decisões do Supremo Tribunal Federal [STF]”, como a decisão de 2019, que enquadrou a homofobia e a transfobia como crimes de racismo.

Além disso, o secretário aponta que o texto legislativo encontrou resistência nos setores políticos conservadores do estado, levando a julgamentos sobre a constitucionalidade da lei – o que foi garantido pela Justiça. Ele também criticou o “pouco engajamento” do Estado de SP em divulgar a norma após a promulgação.

“O governo do Estado, propriamente dito, nesses anos todos, oscilou entre uma total omissão e uma divulgação parcial que nunca atingiu a massa da população de São Paulo para que houvesse uma reação coletiva, ampla, da sociedade paulista em apoio aos direitos LGBTQIA+”, disse. Esse movimento, segundo ele, ficou restrito ao movimento militante.

Apesar disso, Simões comemora as garantias trazidas com a Lei nº 10.948. “Ela tem a sua validade, e tem também um caráter pedagógico, porque muitas das decisões da Comissão Especial criada para apurar esses casos geram também obrigações de divulgar e de reparar. Então, a lei mantém a sua atualidade e o seu papel positivo na promoção dos direitos, não só pelo caráter punitivo, mas também pelo caráter pedagógico da existência da punição”, afirmou.

O secretário reconhece, no entanto, que a norma não basta para punir efetivamente os casos de LGBTfobia. “Isso não substitui a necessidade de uma lei federal, então acho que essa luta permanece”, destacou.

Para Domingos, coordenador do GGB, além de uma lei específica, falta capacitação para as polícias, protocolos específicos de investigação de crimes de ódio e, “principalmente, vontade política”.

“Falta diálogo com entidades da sociedade civil, investimento em campanhas educativas e monitoramento constante dos dados. Falta coragem para admitir que a homotransfobia é uma realidade letal, e que ela precisa ser combatida com políticas públicas estruturadas, e não com estatísticas fantasiosas”, afirmou.

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