O Aienígena (Parte XIX)
Clauder Arcanjo* Pintura Capoeira, de Carybé. — Temos que mudar a nossa estratégia! O desgraçado parece que está fazendo troça da gente! — desabafou João Américo, o, até então, protofilósofo de Licânia. Você me indaga, leitor arisco, por que uso o termo “até então”? Explico. Com a sequência de vitórias do tal […]


Clauder Arcanjo*
Pintura Capoeira, de Carybé.
— Temos que mudar a nossa estratégia! O desgraçado parece que está fazendo troça da gente! — desabafou João Américo, o, até então, protofilósofo de Licânia.
Você me indaga, leitor arisco, por que uso o termo “até então”? Explico. Com a sequência de vitórias do tal alienígena, desvendando antecipadamente os planos arquitetados pelos “sábios de Licânia”, pondo por terra todas as reputações dos valorosos investigadores da província e do além-sertão, impondo cada vez mais o pavor nos corajosos filhos da ribeira do Acaraú, a dita reputação, não apenas do protofilósofo, bem como do padre, do prefeito, do sacristão, da força das rezas das pias Filhas de Maria, estavam indo de mal a pior.
Reunidos ao pôr do sol no alto do Serrote da Rola, vendo a pequena Licânia mergulhar no lusco-fusco da chegada da noite, os presentes sentiram o banzo invadir-lhes o espírito, sem falar na saudade dos lençóis e de suas redes. Isso, ao invés de deixá-los cabisbaixos, recobrou-lhes as forças. Essas que ressurgem das profundezas da alma de todo provinciano que se preza.
— Vamos nos armar! De pau, de pedra, de espingarda soca-soca… Enfim, de tudo que estiver ao nosso alcance. Se faltar bala, a gente joga bosta em cima desse desgraçado! — exaltou-se o padre Araquento, renunciando ao latim e partindo para a linguagem da rua, tão comum aos pecadores da terra.
— Por Senhora Sant’Anna, não podemos ficar nesse sobe e desce da cidade para o alto deste Serrote da Rola. Não há cristão que aguente! — desabafou Gazumba.
— Sem falar que o combustível já nos falta. Entramos no nível crítico do estoque: só nos restam duas garrafas de pinga serrana — anunciou Zé Aguiar.
— Isso será o nosso fim! — declararam todos, em coro.
Brizolete Hernandes, Robertão Social, acompanhados pelo cachorro Goiaba, se aproximaram do grupo. Brizó pediu a palavra:
— Devemos nos dividir. Um grupo seguirá comigo, com o Robertão e com o Goiaba. Outro, ficará na retaguarda e pronto para nos socorrer, caso sintam que estamos em desvantagem no combate. Quem se junta ao primeiro grupo, o que vai para a frente da batalha, fique à minha direita; aqueles que comporão a retaguarda podem se postar à minha esquerda.
Homens e mulheres presentes se movimentaram, seguindo a orientação de Brizó.
Após realizar a contagem dos dois grupos, Robertão Social desabafou:
— Será a primeira guerra na minha vida em que verei mais gente na retaguarda do que no front da batalha!
Licânia contaria, na frente de combate, com Brizó, Robertão, Goiaba e… para surpresa geral, Das Dores.
— Vamos à luta! Nós quatro nos transformaremos em quatrocentos — defendeu Das Dores, altaneira. — Aprendi a lutar capoeira com o Valter, amante baiano que tive. E vocês, seus filhos de uma égua, cuidem de zelar por nossa retaguarda. Se não o fizerem, com honra e destemor, nem pensem em me visitar mais no Caneco Amassado. Fecharei meu negócio para todo covarde, fiquem logo sabendo! — arrematou.
— Podem seguir em paz. Usarei meus conhecimentos de quartel para treinar o grupo de retaguarda! — Cabo Jacinto Gamão tentou justificar a sua escolha.
E, assim, a legião Brizó desceu para a primeira batalha.
& & &
A turma da retaguarda, após acalorados debates, decidiu manter posição no alto do Serrote da Rola.
— Daqui poderemos acompanhar melhor o avanço da batalha! — disse Paulo Bodô.
— E fugir de forma mais segura — soprou Baltazar do Bozó.
— O que você falou, Baltazar? — inquiriu João Américo.
Belarmino saiu em socorro do velho cambista:
— Nada de importante. Apenas Baltazar está preocupado com o futuro da sua banca.
— Isto não é hora de pensarmos em nossos negócios pessoais e, sim, nos destinos de Licânia — arrematou o protofilósofo de Licânia.
& & &
Dois dias e duas noites se passaram. Nenhuma notícia da legião de Brizó.
— Quem vem lá? — perguntou o professor Galvino, ao avistar algo a se mexer na mata, próximo de onde eles se encontravam.
Por precaução (e não por medo), todos fugiram para a parte mais alta do Serrote da Rola.
— Desçam daí, seus frouxos, é o Goiaba!
E o pobre cachorro, muito ferido, trazia nos olhos assustados um aviso aos da retaguarda.
No capítulo seguinte, hei de decifrar a linguagem viva dos olhos de um cão.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
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