O ALIENÍGENA (PARTE XV)
Clauder Arcanjo* Pintura Igreja Antiga em San Juan, de Buddy Oxley. Após uma semana, depois que a poeira da última fuga dos licanienses assentou — por pressão da sociedade e por mero dever de ofício —, o cabo Jacinto recolheu o Raimundo Sacristão à cela da Cadeia Pública Municipal. — Prisão preventiva! — anunciou […]


Clauder Arcanjo*
Pintura Igreja Antiga em San Juan, de Buddy Oxley.
Após uma semana, depois que a poeira da última fuga dos licanienses assentou — por pressão da sociedade e por mero dever de ofício —, o cabo Jacinto recolheu o Raimundo Sacristão à cela da Cadeia Pública Municipal.
— Prisão preventiva! — anunciou imperioso.
— Prevenção contra o quê, homem de Deus? Se esse miserável tem medo até de barata?! — clamava Dona Maria Djanira, defensora intransigente dos menos favorecidos.
— Dona Maria, por favor, fale baixo! Um sacristão tem lá as suas dignidades — rogava o indigitado.
— Senhora Maria Djanira, sugiro que converse com o seu esposo. Lei é lei, e estamos conversados! — encerrou o representante da ordem, passando a chave na porta principal.
Em seguida ouviram-se seus passos no rumo da cela.
Uma hora depois metade dos fuxiqueiros e das fuxiqueiras de Licânia cerravam fileira na frente do prédio público. Enquanto a outra metade espalhava os boatos que germinavam na calçada da cadeia.
— Ele deve saber de tudo — instigava Baltazar do Bozó, botando fogo na conversaria.
— A coisa sempre recai sobre as camadas desassistidas, desde a época de Cristo — argumentava João Américo; ele que ultimamente andava com os olhos curiosos metidos nos ensinamentos de Marx.
— Hoje foi o sacristão, amanhã, creiam no que estou dizendo, pode ser qualquer um de nós. A força não reconhece ninguém, apenas respeita os donos do poder — esbravejava Zé Aguiar sob os eflúvios etílicos oriundos da cachaça serrana, batizada no bar do Edir.
Daí a pouco a bagunça silenciou. Do fundo da cadeia, ouvia-se um clamor agônico:
— Pela mãe de Deus, não aguento mais! Aiiii… aiii! Madrinha Sant’Anna, salvai-me!
Os presentes se entreolharam, confusos diante daquele sofrimento.
— Aguente, cabra frouxo! Eu nem comecei a lhe apertar ainda! Desembuche logo, ou vai sentir a mão pesada da justiça, seu facínora!
Samaria Constância, moça velha reconhecida como mulher de coração duro, foi a primeira a capitular:
— Tortura é crime inafiançável e hediondo. Cadê os homens de Licânia? Vão ficar apenas ouvindo os lamentos desse coitado?
A turma se reuniu e, juntos, começou a bater na porta grande, exigindo:
— Cabo?! Pare com isso!
Da cadeia, outro rogo:
— Nos bagos, não. Nos bagos, não! Aiiii… aiii…
Todos os homens presentes levaram as mãos ao saco escrotal, como se protegendo os seus pertences.
Nesse exato instante os sinos da cidade repicaram, como se a convocar toda a cidade.
Homens e mulheres silenciaram, a pressentirem algo estranho no ar.
O Zé Aguiar quebrou o silêncio:
— Puta merda, é o belzebu. Digo, o tal do alien…
Nem deu tempo de completar a frase, pois Paulo Bodô já corria a gritar para os demais:
— Dispersar, dispersar… O bicho agora está nos dois campanários: da Igreja Matriz de Sant’Anna e do São João!
Um alvoroço se instalou. Os mais corajosos tremiam; os menos, já mijando nas calças, entregavam a alma a Deus antecipadamente:
— Meu Pai Celestial, roubei na balança. Confesso perante todos os santos…
— Pequei muitas vezes, por pensamentos, atos e supressões…
— Traí o meu marido. Caí mais de três vezes, clamo pelo Seu perdão e por Sua misericórdia, Senhor.
Depois dessa enxurrada de confissões, em meio a uma correria dos infernos, se ouviu:
— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…
O Serrote da Rola acolheu-os mais uma vez.
E a este narrador, claro.
— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…
Se escaparmos desta, frio leitor, depois a gente conversa.
*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.
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