O alienígena (Parte XVII)

Clauder Arcanjo*   Fotografia de Juan Rulfo.   O vento somente se acalmou dias depois, deixando o chão de Licânia varrido pela desgraça. Diante da Matriz de Sant’Anna, amontoava-se uma pilha de lixo: garrafas, plásticos, pedaços de madeira e, pasmem, instrumentos da Banda de Música Furiosa. Isso se deu porque a Furiosa se preparava para […]

May 11, 2025 - 01:00
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O alienígena  (Parte XVII)

Clauder Arcanjo*

 

Fotografia de Juan Rulfo.

 

O vento somente se acalmou dias depois, deixando o chão de Licânia varrido pela desgraça.

Diante da Matriz de Sant’Anna, amontoava-se uma pilha de lixo: garrafas, plásticos, pedaços de madeira e, pasmem, instrumentos da Banda de Música Furiosa. Isso se deu porque a Furiosa se preparava para um retorno grandioso, sob os auspícios da comemoração da volta à normalidade com o fim do mistério do tal alienígena.

Qual o quê! Nem o mistério se resolveu, nem apareceram músicos suficientes para o ensaio das marchas selecionadas, repertório meticulosamente escolhido pelo maestro Saldívio Carvalho. Camarão deixou seu instrumento de sopro a ver moscas, o trompetista sumiu há dias e nunca mais foi visto nas redondezas; o corneteiro, falam as más-línguas, aproveitou a ocasião para desaparecer na companhia da mulher do saxofonista. Dispostos na calçada da Matriz pelo maestro, cornetas, bombardinos, tubas, bumbo, caixa, tarol, pratos, surdo e outros instrumentos foram arrastados e misturados com o lixo tangido pela ventania assanhada pelo medo.

Quando tudo se acalmou, o maestro Saldívio meteu-se por entre a montanha de despojos e foi salvando cada um dos sofridos instrumentos da centenária bandinha.

— Depois dessa, caso a Furiosa retorne, hei de compor, em desagravo, uma marcha fúnebre.

 

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Semana depois, sem mais um novo sinal da presença dos uivos do tal alienígena, a população foi, aos poucos, voltando à vidinha de sempre.

Companheiro Acácio, sobraçando Pessoa e Drummond, recitava poemas na Praça do Poeta sob a vigilância de algumas beatas rabugentas. Estas a suspeitarem de que certos poemas poderiam assanhar a libido das inocentes moças da província.

— “Casas entre bananeiras / mulheres entre laranjeiras / pomar amor cantar. // Um homem vai devagar. / Um cachorro vai devagar. / Um burro vai devagar. // Devagar… as janelas olham. // Eta vida besta, meu Deus.” — declamava Acácio, provocando as Pias Filhas de Maria.

 

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Na Avenida São João, ainda sob o impacto do mistério dos dobres, em plena madrugada, do sino da pequena igreja, convocando estranhamente os fiéis para a Santa Missa, ouviu-se o latido inconfundível do cachorro Goiaba.

— É o Goiaba! O valente Goiaba está de volta! — comemorou Madame Brizolete Hernandes, ladeada pelo seu fiel escudeiro Robertão Social.

Com pouco mais, juntando-se à festa devido ao retorno do estimado cãozinho, surgiram: Zé Aguiar, Cabo Jacinto Gamão, João Américo, professor Galvino, Baltazar do Bozó, Belarmino, Paulo Bodô.

Rolou uma rodada da serrana e, assim, os ânimos entraram em compasso de festa. Não se sabe como, em seguida surgiu entre eles uma sanfona e um triângulo, e o forró correu solto:

— “Olha, isso aqui tá muito bom / Isso aqui tá bom demais / Olha, quem tá fora quer entrar / Mas quem tá dentro não sai.”

Após a festança, os casais se amaram, e a madrugada caiu numa paz não vista há meses naquele chão.

Quando o dia surgiu, encontrou a todos entregues a uma bendita ressaca: daquelas abençoadas por Deus e pelo…

— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…

— De novo, não! — clamei ao vento.

— …uuuuuuu… Auuuuuuu… uuu…

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

 

 

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