O ALIENÍGENA (PARTE XXXI)

  Clauder Arcanjo* O beijo de Judas, de Giotto. Estou de volta ao Brasil. Admito que ainda um pouco fora de órbita. Melhor evitar essas palavras ligadas ao espaço, pois pode ser de lá o ser que vem atazanando toda a província de Licânia. Continuemos. Depressa me inteirei dos fatos que transcorreram durante essa minha […]

Agosto 17, 2025 - 00:30
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O ALIENÍGENA (PARTE XXXI)

 

Clauder Arcanjo*

O beijo de Judas, de Giotto.

Estou de volta ao Brasil. Admito que ainda um pouco fora de órbita. Melhor evitar essas palavras ligadas ao espaço, pois pode ser de lá o ser que vem atazanando toda a província de Licânia. Continuemos.

Depressa me inteirei dos fatos que transcorreram durante essa minha ausência de uma semana.

Em primeiro lugar, colhi o depoimento de dona Maricota das Luzes. Segue o relato, sem nenhuma licença poética. Nu e cru como me entrou pelos ouvidos:

— Era noitinha. Cheguei em casa, retirei a tramela da porta e escutei um vagido na cozinha. Apurei os sentidos, e um silêncio pesado correu pelo meu casebre. Esperei. Com pouco mais, outro vagido; desta feita baixinho. Peguei a tranca, que guardava escorada à parede da frente, e me preparei para o pior. Mais silêncio. “Quem está aí?” Confesso que a voz saiu cortada pelo medo. Mais baixa do que eu esperava. Quis limpar a garganta, mas o gorgomilo estava tampado e de lá nada saía, nem descia de garganta abaixo. As pernas começaram a me faltar, num tremor de febre terçã. “Vixe, minha Senhora Sant’Anna! Valei-me!”, pensei cá comigo. Um batido de panela, misturado a ruflar de asas. E um grito, misturando miado com balido de ovelha desgarrada. Não vi mais nada, desmaiei. Acordei na calçada, madrugada alta. Os vizinhos quiseram me botar para dentro de casa, e eu roguei: “Não, não! A esta casa não retorno!” E sebo nas canelas, seu Arcanjo! Não quero mais saber desta cidade condenada. Vou-me embora, e para cá não volto.

 

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No dia seguinte, foi a vez de ouvir o Bastião da Serrota. O cabra me encarou com desconfiança, fiz-lhe um cerca-lourenço, até que ele desembuchou:

— Chego em casa sempre noite alta. Volto do roçado, meto-me no bar do Horácio para ouvir as conversas do dia, espanto o cansaço com quatro ou cinco doses da cachaça mais braba e, antes do bar baixar as portas, sigo para casa. Não foi diferente nessa ocasião. Peguei a chave debaixo do jarro da frente e, antes de dar a primeira volta, um suspiro fundo, como se dentro da sala houvesse gente. Como, se eu morava sozinho?, pensei. Achando que eram diatribes da pinga no meu juízo, dei uma volta na chave, empurrei a porta e entrei. Seu doutor, o diabo deu um urro misturado com um arrastado de ferro, que eu, do jeito que entrei, mais do que ligeiro saí. A coisa ainda assoviou numa língua das estranjas; e eu, atrapalhado do passo da carreira, me estatelei no chão da calçada e lá fiquei. Não sei lhe dizer por quanto tempo. Só a lembrança da voz do vizinho: “Bastião?! Acorda, homem! Deve ter bebido um porre daqueles!”. Levantei-me e corri no rumo das ventas, sem parar. De manhã, entrei na Igreja Matriz. Lá me joguei aos pés do padre Araquento, desembuchando, na frente de todos, o meu bornal de pecados. Não quero negócio com Licânia; estou juntando meus trapos e vou-me embora daqui a pouco.

 

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A terceira pessoa que ouvi foi a senhorita Adalgisa Gumercinda, moça velha, herdeira do casarão maior da Avenida São João, assim como de grande parte das terras próximas ao Serrote da Rola:

— Terminada a reza do terço na casa do seu Eurico e dona Adamir, despedi-me do casal e segui para casa. Quando pus os pés dentro da sala, um chafurdo no corredor. Pensei, de início, que era o meu gato Aristides. Chamei por ele: “Aristides?!”. Nada. Guardei o missal na gaveta da cristaleira, rezei o pai-nosso e fui ligar o rádio. É costume meu ouvir a Voz do Brasil. Quando me aproximei do móvel, um chiado em mistura com um miado de bicho rouco. Nunca fui de ter medo, mas fiquei de cabelo em pé. Quis clamar pela Virgem Maria. Cadê a voz me atender?! Só escapou da minha garganta um sopro como se de gente tísica. Com pouco, um arroto grande, engrolado com um uivo potente. O véu escorregou do alto da minha cabeça, e senti o mundo girar. Só acordei com seu Francisco, que sempre me traz o leite das minhas terras, chamando-me pelo nome: “Senhorita Adalgisa? Senhorita…”. Tornei a mim com um grito tão desembestado, que foi a vez do coitado do meu vaqueiro perder os sentidos. Pois muito bem, foi isso o acontecido. Não sou dama para aguentar tamanho desacato. Vou me mudar para a capital. Isso lá é terra de gente decente!

 

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Reli e tresli os três depoimentos, a coisa me causava uma certa desconfiança. Anotei coisas, rabisquei possibilidades, enumerei suposições… Enfim, levei quatro dias e quatro noites no exame detalhado de todos aqueles relatos.

Hoje, mais cedo, convoquei Companheiro Acácio e o gato Nabuco, e passamos horas em foros de Sherlock Holmes.

 

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Não chegamos ainda a nenhuma conclusão. As reticências são provas evidentes disso.

Estamos divididos: Acácio propõe uma visita aos três domicílios, a fim de recolher provas; Nabuco não quer nem ouvir falar em tal atitude; eu, precavido, prefiro ficar por aqui, dando…

— Não, não!… Lá vem…

Semana que entra a gente volta a conversar.

 

*Clauder Arcanjo é escritor e editor, membro da Academia Norte-rio-grandense de Letras.

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