O brasiliense não dá bom-dia. Por que será? Tenho alguns palpites

No elevador, na padaria, na calçada, na porta de entrada dos prédios, o bom-dia é tão natural quanto o beijo das formigas que se cruzam

Oct 8, 2025 - 03:30
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O brasiliense não dá bom-dia. Por que será? Tenho alguns palpites

Bom dia! Minha colega de academia sorriu pra mim e eu olhei ao meu redor achando que ela podia estar cumprimentando alguma amiga. Não! Era pra mim o bom-dia. Eu estava sentada no banquinho do lado de fora da academia e ela se sentou ao meu lado.

Tentei explicar a minha quase falta de educação, a demora de segundos para responder ao inesperado cumprimento presencial, ao que ela me tranquilizou:

– Não se preocupe! Aqui em Brasília ninguém cumprimenta ninguém, como diz uma amiga, o povo aqui é tão seco quanto o clima. Na hora, tratei de anotar mentalmente a analogia perfeita para uma crônica.

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Depois de muitos anos sem sair de Brasília, tenho ido às cidades de onde vim, Manaus e Belém e ao Rio de Janeiro, por motivos afetivos e profissionais. Cada vez que vou, cada vez que volto, é um espanto sucessivo. As pessoas dão bom-dia e sorriem em qualquer lugar onde se esteja. No elevador, na padaria, na calçada, no parque, na porta de entrada dos prédios, o bom-dia é tão natural quanto o beijo das formigas que se cruzam entrando ou saindo do formigueiro.

Os candangos do tempo da construção de Brasília se lembram, nostálgicos, da atmosfera de cordialidade que havia na cidade empoeirada. É clássica a lembrança do tal espírito Brasília, que Juscelino aproveitou muito bem para manter o entusiasmo dos operários nos canteiros de obras mesmo enfrentando 16 horas diárias de trabalho, comendo mal e morando pior ainda.

Não é difícil entender, há uma extensa bibliografia de estudos sobre o espírito e a cosmogonia Brasília. Sim, o que aconteceu neste quadrado goiano entre os anos 1950/1960, foi aquilo que um abade francês que esteve aqui à época chamou de “loucura santa”.

O Brasil dos anos dourados, da bossa nova, da vitória na Copa de 58, do presidente simpático, dançarino, seresteiro e sorridente, da arquitetura moderna surpreendendo o mundo, era um Brasil cheio de si, como raras vezes aconteceu na história brasileira. Os brasileiros estavam contaminados de alegria e fé no futuro – finalmente o gigante estava acordando.

E, com o dinheiro farto das emissões de moeda – que redundariam lá na frente na inflação, mas essa é uma outra história –, com o dinheiro caindo em cachoeira nas mãos dos empreiteiros, a excitação moveu os candangos, os pioneiros e os piotários, como no título irônico de um livro que apontava a esperteza dos que enriqueceram com a fartança do dinheiro público.

Rico, pobre ou remediado, o candango dos primeiros anos de Brasília era um sujeito que dava bom-dia e dava carona. Uma cidade nascente, com menos de 100 mil habitantes nos primeiríssimos anos, era mesmo uma ilha da fantasia. Mas Juscelino foi embora, Jânio não gostava nada daqui e logo depois a ditadura encontrou em Brasília o lugar perfeito para se impor, isolado do resto do país, sem povo na rua, sem muros, com imensa extensão de terra vazia, sem lugar pra se esconder. Era como se a cidade tivesse sido feita com instintos totalitários.

Acabou a ditadura, o país voltou a respirar com alegria e liberdade, mesmo nos muitos perrengues pelos quais passou, e Brasília virou outra coisa muito diferente daqueles anos inaugurais, ficou, de muitos modos, uma cidade distópica, portanto, o avesso do espírito que a criou.

O substantivo bom-dia nunca mais voltou a Brasília, especialmente nos locais onde a renda é maior. Há no brasiliense uma certa tensão urbana que nada tem a ver com insegurança pública. Comparando-se com as grandes metrópoles brasileiras, Brasília tem a segunda menor taxa de criminalidade (Atlas da Violência 2024).

Brasília (considerando Brasília todas as cidades do quadrado) é a cidade mais desigual do Brasil. E uma desigualdade perversamente segregada. Aqui, rico e pobre não se misturam, muito menos branco e preto. A renda média per capita do Lago Sul é mais de 20 vezes maior do que das cidades-satélites mais pobres.

O Rio de Janeiro, Recife, Salvador, Belém, por exemplo, também são cidades desiguais economicamente mas nessas cidades as pessoas sorriem e dão bom-dia quase que automaticamente. Faz parte da genética urbana de seus habitantes entrelaçar bons-dias pra ver se o corre fica menos difícil.

Tenho algumas hipóteses para essa fuga do bom-dia: Brasília é uma cidade intimidadora. O desenho diferente de tudo o que conhecemos como cidade, a escala monumental, as vias expressas cortando a cidade, as satélites afastadas umas das outras, a perversa segregação social, o derretimento da utopia, tudo isso deixou o bom-dia sem jeito e ele foi embora.

Quando será que o bom-dia vai voltar? Vai voltar?

* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.

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