Por que Gisele Pelicot voltará ao tribunal após virar símbolo da luta contra o estupro — e ter sua família destruída

Gisèle Pelicot retornará ao tribunal para julgamento de recurso aberto por um dos 51 homens condenados por estuprá-la. Getty Images via BBC No primeiro dia em que Gisèle Pelicot subiu as escadas do tribunal de Avignon, em setembro de 2024, ela era uma avó aposentada anônima. Mas em poucas semanas, essa senhora de 72 anos – vítima no centro do maior julgamento de estupro da história francesa, envolvendo 51 homens, incluindo seu marido – se tornou um ícone feminista. Ela foi vista pela última vez em público quando os veredictos – todos culpados – foram proferidos em dezembro. Àquela altura, multidões de apoiadores gritavam seu nome. Na segunda-feira (6/10), Gisèle Pelicot retorna ao tribunal, desta vez em Nîmes, para o recurso do único dos 51 réus a contestar sua sentença: Husamettin Dogan, 44, casado e pai de um filho. Entre setembro e dezembro do ano passado, a história sombria de Gisèle correu o mundo. Por mais de uma década, ela foi drogada até ficar inconsciente pelo marido, Dominique, e estuprada por dezenas de homens que ele havia recrutado em salas de bate-papo na internet. Dominique Pelicot filmou as agressões e as catalogou cuidadosamente em um disco rígido, o que permitiu aos investigadores rastrear a maioria dos indivíduos envolvidos. Cerca de 20 não puderam ser identificados e permanecem foragidos. Após um julgamento que durou 16 semanas, 46 homens foram considerados culpados de estupro, dois de tentativa de estupro e dois de agressão sexual. Dominique Pelicot recebeu a pena máxima de 20 anos de prisão. O recurso de Husamettin Dogan na próxima semana será, na prática, um novo julgamento. Os vídeos do estupro de Gisèle serão exibidos no tribunal novamente, e Dominique Pelicot estará presente – desta vez, apenas como testemunha. Embora não seja obrigada, Gisèle também comparecerá ao processo. "Todos entenderiam se ela não tivesse comparecido, porque, bem, ela está tentando retomar uma vida normal", disse um de seus advogados, Stéphane Babonneau, à BBC. "Mas ela sente que precisa estar lá e tem a responsabilidade de estar lá até o final do processo." Em dezembro, Dogan foi considerado culpado de estupro qualificado e condenado a nove anos de prisão. Por motivos de saúde, ele recebeu um mandado de prisão suspensa e não está preso atualmente. Ele está apelando tanto da sentença de culpa quanto da duração da pena. Como aconteceu com muitos dos outros 51 homens, a defesa de Dogan se baseou no argumento de que ele não poderia ser culpado de estuprar Gisèle porque não havia percebido que ela estaria inconsciente. Dominique Pelicot rejeitou esse argumento, dizendo que havia deixado bem claro para os homens que recrutou online que sua esposa seria drogada. Em seu depoimento ao tribunal no ano passado, Dogan admitiu ter dito a Pelicot que sua esposa "parecia morta". Ainda assim, ele rebateu veementemente as acusações contra ele. "Não aceito ser rotulado de estuprador", protestou. "É um fardo muito pesado para eu carregar." Embora outros 16 réus também tenham apresentado recursos inicialmente, Dogan foi o único que os levou adiante. Ao contrário do primeiro julgamento, o recurso de Dogan será julgado por um júri composto por nove membros do público, que decidirão sobre sua condenação e a duração de sua pena de prisão. Se ele perder o recurso, a enorme repercussão e a cobertura midiática do julgamento podem fazer com que o júri acabe sendo menos leniente do que os juízes em dezembro passado. "É um risco real e acho que é por isso que tantos homens retiraram seus recursos", disse a magistrada francesa Magali Lafourcade à BBC. Ela acredita que o caso Pelicot teve um impacto significativo na sociedade francesa e que os jurados certamente terão uma nova compreensão das questões sociais em torno do estupro e do consentimento. "Será interessante ver o que o réu apresentará", disse ela. "Ele pode tentar mostrar que aprendeu lições de feminismo ou que não representa um risco para a sociedade. Muito também dependerá da qualidade de sua defesa – e seus advogados sabem o quanto a sociedade evoluiu no último ano." O processo, que desta vez durará apenas quatro dias, promete ser acirrado. No ano passado, a advogada de Dogan, Sylvie Menvielle, sugeriu que os vídeos de estupro mostravam um "jogo sexual a três" e insinuou que Gisèle pode ter sido cúmplice. Os comentários levaram Gisèle, indignada, a deixar o tribunal no meio da sessão pela segunda vez no julgamento, que ela acompanhou assiduamente – como deve fazer novamente na próxima semana. Embora no ano passado ela tenha se dirigido ao tribunal apenas algumas vezes, sempre que o fazia, Gisèle dizia que estava se manifestando para ajudar outras vítimas de estupro: "Quero que digam: se Madame Pelicot fez, eu também posso." A vergonha deve mudar de lado, da vítima para o agressor, ela insistiu. Esse raciocínio esteve no cerne de sua decisão de renunciar ao anonimato, abrir o julgamento à mídia e ao público e pressionar para que os vídeos de seus estupros fossem exibidos

Oct 4, 2025 - 14:30
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Por que Gisele Pelicot voltará ao tribunal após virar símbolo da luta contra o estupro — e ter sua família destruída

Gisèle Pelicot retornará ao tribunal para julgamento de recurso aberto por um dos 51 homens condenados por estuprá-la. Getty Images via BBC No primeiro dia em que Gisèle Pelicot subiu as escadas do tribunal de Avignon, em setembro de 2024, ela era uma avó aposentada anônima. Mas em poucas semanas, essa senhora de 72 anos – vítima no centro do maior julgamento de estupro da história francesa, envolvendo 51 homens, incluindo seu marido – se tornou um ícone feminista. Ela foi vista pela última vez em público quando os veredictos – todos culpados – foram proferidos em dezembro. Àquela altura, multidões de apoiadores gritavam seu nome. Na segunda-feira (6/10), Gisèle Pelicot retorna ao tribunal, desta vez em Nîmes, para o recurso do único dos 51 réus a contestar sua sentença: Husamettin Dogan, 44, casado e pai de um filho. Entre setembro e dezembro do ano passado, a história sombria de Gisèle correu o mundo. Por mais de uma década, ela foi drogada até ficar inconsciente pelo marido, Dominique, e estuprada por dezenas de homens que ele havia recrutado em salas de bate-papo na internet. Dominique Pelicot filmou as agressões e as catalogou cuidadosamente em um disco rígido, o que permitiu aos investigadores rastrear a maioria dos indivíduos envolvidos. Cerca de 20 não puderam ser identificados e permanecem foragidos. Após um julgamento que durou 16 semanas, 46 homens foram considerados culpados de estupro, dois de tentativa de estupro e dois de agressão sexual. Dominique Pelicot recebeu a pena máxima de 20 anos de prisão. O recurso de Husamettin Dogan na próxima semana será, na prática, um novo julgamento. Os vídeos do estupro de Gisèle serão exibidos no tribunal novamente, e Dominique Pelicot estará presente – desta vez, apenas como testemunha. Embora não seja obrigada, Gisèle também comparecerá ao processo. "Todos entenderiam se ela não tivesse comparecido, porque, bem, ela está tentando retomar uma vida normal", disse um de seus advogados, Stéphane Babonneau, à BBC. "Mas ela sente que precisa estar lá e tem a responsabilidade de estar lá até o final do processo." Em dezembro, Dogan foi considerado culpado de estupro qualificado e condenado a nove anos de prisão. Por motivos de saúde, ele recebeu um mandado de prisão suspensa e não está preso atualmente. Ele está apelando tanto da sentença de culpa quanto da duração da pena. Como aconteceu com muitos dos outros 51 homens, a defesa de Dogan se baseou no argumento de que ele não poderia ser culpado de estuprar Gisèle porque não havia percebido que ela estaria inconsciente. Dominique Pelicot rejeitou esse argumento, dizendo que havia deixado bem claro para os homens que recrutou online que sua esposa seria drogada. Em seu depoimento ao tribunal no ano passado, Dogan admitiu ter dito a Pelicot que sua esposa "parecia morta". Ainda assim, ele rebateu veementemente as acusações contra ele. "Não aceito ser rotulado de estuprador", protestou. "É um fardo muito pesado para eu carregar." Embora outros 16 réus também tenham apresentado recursos inicialmente, Dogan foi o único que os levou adiante. Ao contrário do primeiro julgamento, o recurso de Dogan será julgado por um júri composto por nove membros do público, que decidirão sobre sua condenação e a duração de sua pena de prisão. Se ele perder o recurso, a enorme repercussão e a cobertura midiática do julgamento podem fazer com que o júri acabe sendo menos leniente do que os juízes em dezembro passado. "É um risco real e acho que é por isso que tantos homens retiraram seus recursos", disse a magistrada francesa Magali Lafourcade à BBC. Ela acredita que o caso Pelicot teve um impacto significativo na sociedade francesa e que os jurados certamente terão uma nova compreensão das questões sociais em torno do estupro e do consentimento. "Será interessante ver o que o réu apresentará", disse ela. "Ele pode tentar mostrar que aprendeu lições de feminismo ou que não representa um risco para a sociedade. Muito também dependerá da qualidade de sua defesa – e seus advogados sabem o quanto a sociedade evoluiu no último ano." O processo, que desta vez durará apenas quatro dias, promete ser acirrado. No ano passado, a advogada de Dogan, Sylvie Menvielle, sugeriu que os vídeos de estupro mostravam um "jogo sexual a três" e insinuou que Gisèle pode ter sido cúmplice. Os comentários levaram Gisèle, indignada, a deixar o tribunal no meio da sessão pela segunda vez no julgamento, que ela acompanhou assiduamente – como deve fazer novamente na próxima semana. Embora no ano passado ela tenha se dirigido ao tribunal apenas algumas vezes, sempre que o fazia, Gisèle dizia que estava se manifestando para ajudar outras vítimas de estupro: "Quero que digam: se Madame Pelicot fez, eu também posso." A vergonha deve mudar de lado, da vítima para o agressor, ela insistiu. Esse raciocínio esteve no cerne de sua decisão de renunciar ao anonimato, abrir o julgamento à mídia e ao público e pressionar para que os vídeos de seus estupros fossem exibidos no tribunal. Foi uma decisão importante e a razão pela qual o julgamento ganhou repercussão mundial. Desde que os veredictos foram proferidos, Gisèle Pelicot foi nomeada uma das 100 pessoas mais influentes da revista Time. Ela também recebeu diversos prêmios, incluindo a Legião de Honra francesa, e recebeu uma carta pessoal da rainha Camila da Inglaterra. Mas, em geral, após aqueles meses sob os olhos do público, Gisèle conseguiu recuperar a privacidade que lhe fora negada por tanto tempo. Logo após o término do julgamento, ela se refugiou na Île de Ré, uma pequena ilha na costa atlântica da França. Por um tempo, as únicas imagens dela que circularam foram selfies ocasionais postadas por seu filho Florian nas redes sociais, mostrando-a sentada à beira-mar, sorrindo para a câmera. Mas essa privacidade não durou. Na primavera passada, a revista Paris Match publicou fotos dela e de seu novo parceiro passeando pela Île de Ré tiradas por paparazzi. Muitos notaram que se tratava de mais um caso de imagens pessoais sendo tiradas e compartilhadas sem seu consentimento. Sua equipe jurídica levou a publicação à Justiça, argumentando que a decisão de Gisèle de renunciar ao seu anonimato durante o julgamento não significava abrir mão de seu direito à vida privada. "Ela é uma vítima de estupro que se tornou uma figura pública apesar de si mesma", disse seu advogado, Antoine Camus. O caso acabou sendo resolvido após a Paris Match concordar em fazer doações a duas associações que apoiam vítimas de violência sexual. A visibilidade pública de Gisèle Pelicot não é a única coisa que mudou desde o ano passado. Quando o processo começou, em setembro de 2024, ela era sustentada pelos três filhos adultos – Caroline, David e Florian. Agora, a família unida que deu entrada no tribunal de Avignon em setembro passado não existe mais. David Pelicot e Caroline Darian se autodenominaram "vítimas esquecidas" do julgamento e, na próxima semana, em Nîmes, Gisèle estará acompanhada apenas por Florian, o caçula de seus filhos. No cerne da divisão familiar está um momento que abalou o tribunal em novembro passado, quando Gisèle foi questionada sobre fotos encontradas no computador de Dominique Pelicot mostrando sua filha, Caroline, seminua e aparentemente dormindo. Caroline Darian sempre insistiu que as fotos provam que seu pai também a drogou e agrediu – e em março apresentou queixa contra ele. Ele sempre negou ter abusado sexualmente de sua filha. Caroline relembrou como, no tribunal, Gisèle se recusou a abordar as acusações de incesto contra o marido. "E é como se o chão se abrisse sob meus pés. O silêncio dela falou muito. Marcou um ponto sem volta." "Eu era sua única filha, ela não deveria ter soltado minha mão, especialmente naquela época", escreveu Darian. Devastada pelo que considerou a "rejeição" de sua mãe, ela deixou o tribunal. Darian – que desde então se lançou em uma batalha contra a "submissão química" (agressão sexual facilitada por drogas) – disse que ela e Gisèle não se falam mais e que ela não deve comparecer ao julgamento na próxima semana. Seu irmão mais velho, David, que tem se manifestado em seu apoio, também se manterá afastado. Seu filho Nathan, agora com 19 anos, também apresentou queixa contra Dominique Pelicot depois que o julgamento supostamente reacendeu memórias de abuso sexual na infância. Quando as acusações foram retiradas no início deste ano por falta de provas, Caroline disse estar "indignada e enojada". "É como se dissessem: sua dor existe, mas... não pode ser reconhecida, nunca vai acabar." Para ela, Nathan e outras vítimas que não conseguem apresentar as provas que Gisèle tinha, "não haverá verdade, nem justiça, nem reparação." Da mesma forma que o julgamento do ano passado repercutiu muito além do tribunal de Avignon, gerando discussões urgentes em todo o país sobre estupro, consentimento e violência de gênero, os crimes de Dominique Pelicot repercutiram na família, destruindo-a. Imagens tiradas no dia da abertura do julgamento, em setembro de 2024, destacam as mudanças sísmicas que atingiram os Pelicot nos últimos 13 meses. Elas mostram como o salão do tribunal de Avignon estava quase vazio quando Gisèle e sua família entraram pela primeira vez. Em poucos dias, o local se tornaria um polo movimentado de ativistas, jornalistas e membros do público – multidões que certamente se reunirão novamente na nova audiência em Nîmes. Uma das fotos mostra como a família Pelicot costumava ser unida: sentada em um pequeno banco no tribunal, amontoadas, aguardando o início do processo. Sob o abraço protetor de seus irmãos, Caroline, inclinando-se para a frente, beija Gisèle na bochecha.

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