Tardezinha se consagra como um fenômeno que redefine sucesso
Um Brasil inteiro cantando junto, afirmando que há linguagens que não precisam pedir licença para ocupar o centro
Sob a condução do cantor e compositor Tiaguinho, no palco, e do ator e empresário Rafael Zulu, na visão estratégica que sustenta o projeto, a Tardezinha reuniu, no último sábado, cerca de 80 mil pessoas no Parque Olímpico do Rio de Janeiro. Sete horas ininterruptas de samba e pagode organizaram uma experiência pensada para quem veio apenas se divertir, e encontrou qualidade. Um Brasil inteiro cantando junto, afirmando que há linguagens que não precisam pedir licença para ocupar o centro.
Há eventos que acontecem. E há eventos que permanecem. A Tardezinha já não cabe na categoria de espetáculo episódico. Ela se instala na memória coletiva como um gesto contínuo, que cresce porque entende seu público, respeita sua história e aposta na recorrência como valor. Ao tratar o pagode com centralidade, e não como apêndice festivo, o projeto transforma presença em pertencimento e número em significado. Ali, a multidão não é massa, é comunidade.
Os números impressionam, mas eles dizem pouco sozinhos. O que importa é o modo. Enquanto grandes festivais brasileiros, como Rock in Rio ou Lollapalooza, se estruturam na lógica da multiplicidade de palcos, gêneros e experiências paralelas, a Tardezinha aposta no oposto. Um projeto só. Uma linguagem só. Ainda assim, mobiliza públicos que rivalizam com os maiores eventos do país, sem diluir identidade, sem negociar essência.
Essa escolha estética não é ingênua. Ela é política, ainda que não se anuncie como tal. O pagode, frequentemente empurrado para o lugar do entretenimento menor, revela sua potência quando tratado com inteligência, cuidado e visão de longo prazo. A Tardezinha expõe uma verdade incômoda. Não há fragilidade na cultura popular negra. Há fragilidade nos critérios que insistem em medi-la a partir de parâmetros que nunca lhe pertenceram.
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Talvez por isso parte da grande mídia ainda hesite em nomear esse sucesso com a grandeza que ele carrega. O comunicador Roger Cipó provoca uma pergunta necessária. Por que eventos dessa magnitude, quando nascem da cultura negra e se sustentam por ela, precisam provar mais, crescer mais e insistir mais para receber o mesmo reconhecimento simbólico que outros recebem com menos? Não se trata de ausência de cobertura, mas de um reconhecimento sempre adiado, sempre condicionado.
Há uma camada que precisa ser explicitada com clareza. A Tardezinha é liderada por dois homens negros que controlam narrativa, marca e público. Tiaguinho e Zulu não operam como exceção, operam como paradigma. Isso desloca expectativas, desorganiza hierarquias e tensiona um mercado acostumado a lucrar com a cultura negra sem conceder a ela protagonismo pleno. Quando o sucesso vem com autonomia, ele incomoda.
Nada ali é improviso. É método. É leitura sofisticada de mercado. É compreensão de que a arte negra sempre esteve pronto para experiências de excelência, apenas raramente foi tratado como tal. A Tardezinha não ensina esse público a consumir cultura. Ela o reconhece como produtor de sentido, de valor e de permanência.
Não por acaso, outros artistas passaram a seguir o mesmo caminho. Projetos autorais contínuos, experiências que criam ritual, pertencimento e recorrência. A Tardezinha inaugurou uma gramática de sucesso que não depende da validação internacional, nem da chancela dos velhos centros de poder cultural. Ela nasce inteira, sustentada por quem a consome e por quem a cria.
Celebrar a Tardezinha é mais do que celebrar um evento lotado. É disputar o nome das coisas. É afirmar que excelência também nasce do samba, do pagode e da inteligência coletiva negra. A Tardezinha já entrou para a história. Falta apenas que alguns aprendam a chamá-la pelo nome certo: a maior iniciativa artística de sucesso das últimas décadas.
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