Última coluna do ano: em 2026, não haverá votos inocentes

Não existe voto consciente quando mais da metade da população brasileira é negra e permanece concentrada nas estatísticas de pobreza

Dezembro 30, 2025 - 13:30
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Última coluna do ano: em 2026, não haverá votos inocentes

Esta é a minha última coluna do ano. O tempo que se anuncia não pede conciliação, pede lucidez. O ano que termina deixa rastros demais para serem varridos com simples votos de boas festas. O ano que começa traz eleições. E eleição não é espetáculo, não é torcida futebolísticas, não é catarse coletiva em rede social. Eleição é projeto de país.

Não existe voto consciente quando mulheres seguem sendo mortas e isso não orienta escolhas políticas. Não existe voto consciente quando mais da metade da população brasileira se declara negra e permanece concentrada nas estatísticas de pobreza, violência e exclusão. Não se trata de pauta identitária, trata-se de vida concreta. Trata-se de entender que cada voto legitima prioridades e abandona outras.

Reduzimos demais o voto à figura do presidente ou do governador, como se o destino do Brasil coubesse em um único nome, um único rosto, uma única biografia vendável. O poder não mora sozinho no Executivo. Ele se multiplica, se trava, se desvia e se afirma no Legislativo. É ali que se decide se um governo anda ou empaca, se direitos avançam ou são sabotados, se a democracia é substantiva ou apenas protocolar.

Não é possível falar de voto consciente sem falar do Congresso Nacional e das Assembleias Legislativas, porque é ali que o Executivo, nacional e estadual, é fiscalizado, sustentado ou travado. Não é aceitável continuar elegendo parlamentares que legislam contra o próprio povo que dizem representar. Não é razoável esperar políticas públicas eficazes quando se vota em quem transforma mandato em trincheira ideológica, balcão de negócios ou palanque permanente de ressentimentos.

Há impossibilidades morais que precisam ser nomeadas. É impossível, em um país que mata mulheres todos os dias, eleger representantes sem qualquer compromisso com políticas de proteção, prevenção e justiça. Isso não é detalhe programático, é critério mínimo de civilidade. Um Estado que naturaliza a violência contra mulheres falha, e um voto que ignora isso legitima essa falha.

Também é impossível continuar fingindo normalidade em um país onde a maioria negra segue vivendo as consequências mais duras da desigualdade histórica. Isso não é acaso nem somente herança mal resolvida, é estrutura em funcionamento. E estruturas não se desmontam com discursos genéricos sobre meritocracia, mas com leis, orçamento, fiscalização e vontade política. Quem você elege para o Legislativo decide se essa engrenagem será desmontada ou cuidadosamente mantida.

Vivemos em um Estado que se define como democrático de direito. Essa definição não é retórica. Ela impõe obrigações. Democracia sem igualdade vira privilégio para poucos. Liberdade sem acesso vira ficção. A Constituição brasileira não fala em dignidade de alguns, fala em dignidade da pessoa humana. Não hierarquiza vidas, não seleciona quem merece direitos. Quando o Legislativo ignora isso, ele não diverge, ele trai.

Votar é um ato que deveria nos tirar do conforto. Exige leitura, escuta e memória. Exige saber quem votou contra direitos trabalhistas, quem votou contra políticas de educação, quem votou contra a proteção ambiental, quem votou contra a vida. O voto não pode ser gesto de afeto pessoal nem prêmio por afinidade moral. Ele precisa ser instrumento de cobrança coletiva.

Há quem diga que nada muda, que tudo é igual, que política é sempre suja. Essa descrença interessa exatamente a quem já ocupa o poder. Democracias não morrem apenas por golpes, morrem por cansaço, por cinismo, por desistência. Quando o eleitor abandona o debate, alguém ocupa esse espaço com projetos autoritários e discursos simplificadores.

Encerrar o ano falando de eleição não é antecipação indevida, é responsabilidade histórica. O Brasil não precisa de um futuro abstrato, prometido em campanhas publicitárias. Precisa de um presente justo, possível e concreto. Um presente onde mulheres possam viver sem medo. Onde pessoas negras possam viver sem pedir licença. Onde direitos não sejam tratados como concessão, mas como fundamento.

Apesar de tudo, ainda acredito. Não por ingenuidade, mas por necessidade ética. Acreditar, aqui, é levantar-se da cama, é discutir política na mesa, é confrontar desinformação, é votar com consciência e acompanhar mandatos depois da urna. A esperança que interessa não é a que espera, é a que vigia.

Que 2026 nos encontre mais atentos do que otimistas, mais críticos do que apaixonados, mais comprometidos do que confortáveis. Talvez assim consigamos construir, não um Brasil do amanhã, mas um Brasil do agora. Um Brasil do presente que contemple todas as pessoas. Agora sim, feliz ano novo!

Tradicionalmente, encerro o ano compartilhando leituras que me atravessaram:

A CULPA É DO DIABO Carolina Rocha

A RAINHA DA RUA PAISSANDU Lázaro Ramos

CAMINHO PARA O GRITO Jarid Arraes

CORAÇÃO SEM MEDO Itamar Vieira Júnior

DE ONDE ELES VÊM Jeferson Tenório

DIÁRIO DO VENTO Elisa Lucinda

DICIONÁRIO DE DIREITOS HUMANOS E AFINS Nei Lopes

ESCALAVRA Marcelino Freire

MERIDIANA Eliana Alves Cruz

NOSSOS PASSOS VÊM DE LONGE Conceição Evaristo, Eliana Alves Cruz, Cidinha da Silva, Ana Paula Lisboa e Luciana Nabuco – Organização Janaina Senna

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