Vanessa Marques: Um fato, duas narrativas: o poder da polarização no ambiente digital
Após 14 horas, o voto do ministro Luiz Fux, que absolveu o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus na ação penal da trama golpista, redesenhou o centro do debate público, especialmente nas redes sociais digitais. Até então, o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, acumulava 1,8 milhão de menções. Em poucas horas, Fux […]


Após 14 horas, o voto do ministro Luiz Fux, que absolveu o ex-presidente Jair Bolsonaro e outros réus na ação penal da trama golpista, redesenhou o centro do debate público, especialmente nas redes sociais digitais. Até então, o ministro Alexandre de Moraes, relator do processo, acumulava 1,8 milhão de menções. Em poucas horas, Fux tornou-se protagonista, alcançando 1,9 milhão de menções, sendo 99% delas em menos de 12 horas, segundo o Boletim Democracia em Xeque. Entre 9h e 14h, concentrou quase 290 mil menções por hora, superando Moraes e Flávio Dino e tornando-se o epicentro da atenção digital.
O episódio mostra como a polarização afetiva atua: em ambientes digitais, não são apenas os fatos que moldam a opinião pública, mas os sentimentos políticos que filtram sua interpretação. O mesmo voto foi, portanto, interpretado de formas opostas e carregadas de emoção, reforçando identidades políticas já consolidadas.
No campo conservador, o voto de Fux foi apresentado como símbolo de resistência contra um Supremo supostamente “parcial” e “politizado”. Termos como “honra” (26%), “toga” (27%), “voto” (17%) e “anula” (10%) dominaram a nuvem de palavras, consolidando Fux como herói. Slogans como “In Fux We Trust” viralizaram, e o julgamento foi descrito como “farsa”, “linchamento jurídico” e “perseguição política”, com acusações de manipulação de provas por parte de Moraes.
No campo progressista, a decisão foi vista como gesto casuístico e contraditório. Fux, até então reconhecido por sua postura “punitivista”, foi acusado de ter feito um cavalo de pau adotando uma postura de aspecto garantista para beneficiar Bolsonaro. Hashtags como #FuxApoiaGolpista e #FuxTraidorDaPátria circularam, ainda que com alcance menor que as mobilizações da direita conservadora, mostrando, mais uma vez, a força da atuação da direita no digital. Estudos sobre polarização digital indicam que grupos ideologicamente homogêneos tendem a amplificar suas versões e conteúdos emocionais.
A imprensa tradicional, por sua vez, adotou uma leitura centrada na dimensão institucional e política. Enquanto parte da cobertura tratou a divergência como exercício democrático de pluralidade, outra parte a apresentou como fator de instabilidade capaz de abalar a legitimidade da Suprema Corte.
Esse cenário mostra que a disputa não se dá apenas sobre fatos, mas sobre a forma de contá-los. Enquanto o campo conservador construiu a imagem de um Fux heróico, o campo progressista o retratou como contraditório e oportunista. A imprensa, pressionada pela lógica do tempo real, recorreu a enquadramentos institucionais e dramáticos, tensão, bastidores, virada de roteiro, para traduzir a cena para o público, buscando adotar imparcialidade.
No fundo, o voto de Fux resume a condição atual da comunicação política no Brasil: um único fato se transforma em múltiplas versões conflitantes, que não apenas descrevem, mas criam realidades diferentes para públicos diferentes, independentemente da verdade dos fatos.
A polarização afetiva funciona como filtro de percepção, e o enquadramento da mídia como lente de interpretação. Assim, a objetividade do acontecimento cede espaço à narrativa com viés ideológico. Na era da pós-verdade, como bem diz Santaella, os afetos muitas vezes pesam mais do que a própria veracidade dos fatos.
Vanessa Marques: Jornalista, professora, palestrante. Mestre em comunicação na Espanha e pós-graduada em economia e ciência política. Atua há 20 anos na comunicação política. Em 2025, apresentará sua segunda pesquisa de mestrado sobre espetacularização, neopopulismo e a plataformização do discurso pela direita conservadora na América.
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