A seca na seara dos valores (por Gaudêncio Torquato) 

O processo civilizatório se assemelha a uma régua que mede a evolução de costumes, princípios e valores, avanços e retrocessos.

Oct 26, 2025 - 10:30
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A seca na seara dos valores (por Gaudêncio Torquato) 

O processo civilizatório se assemelha a uma régua que mede a evolução de costumes, princípios e valores, avanços e retrocessos. A régua está a mostrar, hoje, uma era de retrocessos, com a decadência moral (a libertinagem), a regressão social (as novas gerações são menos respeitosas ou educadas do que as anteriores), a perda de valores e a crença de que princípios como família, autoridade e religião estão sendo enfraquecidos.

Nem sempre ocorrem mudanças que emolduram a grandeza do Homem, principalmente ante a paisagem de devastação que flagra a crescente litigiosidade entre seres e Nações, a desvairada competividade no campo dos negócios e empreendimentos, a luta acirrada entre grupos, alas e até credos religiosos, cada qual com a ambição de brilhar na galeria dos maiores e melhores. O evangelismo subiu ao palco do espetáculo. A política acende a chama da polarização, sob a velha bandeira da luta de classes, como se constata na peroração eleitoral do presidente Luiz Inácio, que volta a bater no surrado refrão do “nós contra eles”.

Apesar de certos avanços fluírem sob a teia de pesquisas científicas em muitas áreas, como as ciências biomédicas, a inteligência artificial, a agricultura, a maquinaria produtiva, é inegável que, no sagrado nicho dos valores, a Humanidade vê arrefecido seu ideário de valores éticos.

A ambição, a luta do poder pelo poder, a inveja, a mentira, as falsidades que campeiam e impregnam a interlocução entre as pessoas, enfim, a ideia de que se deve tirar proveito de tudo constituem, entre outros, os braços que puxam o planeta para o seio de nossa ancestralidade. Olhe-se para esse mundo que dá adeus à ética. Olhe-se para a ética do governo de Donald Trump, amplamente debatida e criticada por especialistas, órgãos de fiscalização e opositores. O império Trump – pasmem! – cobra do governo Trump compensação equivalente a R$ 1,2 bilhão por investigações contra ele. Segundo o ‘New York Times’, a situação não tem paralelo na história dos EUA. Muitos dos funcionários do Departamento de Justiça responsáveis por aprovar os pagamentos foram indicados pelo republicano e atuaram como seus advogados. O caso envolve conflito de interesses, o uso da presidência para ganho pessoal e o enfraquecimento de normas e instituições éticas.

O nosso passado foi marcado pela valorização do compromisso. Os nossos pais e avós, ao firmarem negócios, garantiam pela palavra dada ao seu parceiro, o fechamento do acordo. Vi meu pai vendendo ou comprando terras e gado sob a força da palavra e do aperto de mão. Os papéis no cartório apenas finalizavam uma liturgia sagrada: a força da palavra. O débito, o crédito, a crença, a aceitação, a rejeição de alguma coisa tinham por trás o compromisso explícito pela palavra. A identidade das pessoas era ancorada na palavra e nos princípios que regiam a vida do cotidiano. Claro, havia desavenças. E até mortes no universo de famílias que lutavam entre si pelo poder. Mas um certo respeito se via até entre rivais.

A educação era um monumento de grandeza. Os pais lutavam, suavam, apuravam seus recursos para formar os filhos. Os recursos não eram investidos em bolsas de valores. Eram guardados em velhos e pesados cofres ou sob o colchão. Formar um filho, dar a ele a educação para enfrentar os desafios do futuro, compunha o sonho dos chefes e família. Orgulhavam-se de sua família bem-educada, bem instruída.

O educador era uma referência. De saber, de grandeza, de boa orientação, de conjunção de valores. Os professores realizavam seu labor com grande senso de responsabilidade, cobrando dos discentes disciplina e rigor no cumprimento das tarefas.

À propósito, pinço a lição da palestra de um rabino por ocasião de um casamento. A historinha se alastra num vídeo que circula nas redes sociais. Um ex-aluno encontra seu professor, aproxima-se dele e pergunta: “lembra de mim”? Responde o rabino: “Não, quem é você? Ah, você deve ter sido meu aluno”. O rapaz relembra a história, quando na escola, viu um colega com um lindo e caro relógio. Surripiou o relógio do amigo. Que, ao constatar o roubou, abriu o bico. Quem foi, quem não foi?  Balbúrdia. O professor fechou a porta e pediu que todos formassem uma fila. O raptor ficou desesperado. Iria ser flagrado pois o professor iria procurar o relógio em todos os bolsos. Pediu para todos fecharem os olhos. E assim conseguiu recuperar o roubo. O ex-aluno: “professor, o senhor salvou minha alma, minha dignidade. O senhor sabe que fui eu”. O mestre: “mas eu nunca soube que foi você. Eu também estava de olhos fechados”.

Belo exemplo de educador. Que não tinha intenção de punir, mas a de transmitir o legado de consideração pelo outro. Uma aula de Dignidade. Que cai bem nesses tempos de acusações recíprocas, de falsidades, de ódio, de guerras fratricidas. Somos um mundo cheio de carências materiais. A fome ataca e ainda mata milhões.  Mas a fome espiritual, essa que esvazia nossos sentimentos, destrói nossa seara de valores, ataca grupos e classes, com foco mais forte nos habitantes de cima da pirâmide social, movidos pelo impulso da ambição.   Qual a razão? A vontade de poder. Nietzsche escreveu sobre “A vontade de poder”. Após sua morte, a irmã Elizabeth publicou uma coletânea de notas inéditas. Ali se lê: “Você quer um nome para este mundo? Uma solução para todos os seus enigmas? Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso! E vocês também são essa vontade de poder – e nada além disso”.

Essa vontade, no meio da crise que a democracia vive na contemporaneidade, expande a era dos extremos, dos conflitos e da radicalização.

 

Gaudêncio Torquato é escritor, jornalista, professor-emérito da ECA-USP e consultor político

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