A simplicidade (por Gustavo Krause)
Não parece simples falar sobre a simplicidade numa sociedade movida por avanços profundos e vertiginosas mudanças

Não parece simples falar sobre a simplicidade numa sociedade movida por avanços profundos e vertiginosas mudanças. Mais ainda, mergulhada numa guerra narcísica de egos gigantescos e sanguinários. Paradoxalmente, não é complicado. Desde cedo sempre admirei nos meus colegas de colégio e, ao longo da vida profissional, a compreensão da inteligência como a arte de reduzir o mais complexo ao mais simples. O contrário do simples não é o complexo, mas o falso
Na essência, a simplicidade humana é uma virtude que acolhe todas as outras como ensina André Comte Sponville em O Pequeno Tratado das Grandes Virtudes (São Paulo: Martins Fontes, 1995): “O simples vive como respira, sem maiores esforços nem glória, sem maiores efeitos nem vergonha. A simplicidade não é uma virtude que se some à existência. É a própria existência, enquanto a ela nada se soma”.
Não me passaram despercebidos personagens históricos que viveram os três momentos constitutivos da simplicidade: o sofrimento, a reflexão e a transformação. Daí germinava o desprendimento, o despojamento, a leveza e a libertação de se julgar, levando-se a sério demais, para acolher o que vem sem nada guardar como sua.
Qualquer que seja, a virtude somente nasce, floresce e frutifica com a força do exemplo. É o que ocorre com os fundadores da religião que assumem a simplicidade como a sabedoria dos santos. No entanto, em todas as épocas existem os heróis e os covardes, o generoso e o mesquinho, enfim os que aviltam e os que iluminam os caminhos da humanidade.
Foi lendo e vivendo a diversa natureza humana, busquei apaixonadamente conhecer um pouco dos personagens que marcaram sua passagem pela História como portadores da simplicidade: São Francisco de Assis, Henri David Thoreau, Gandhi, Leon Tolstoi, Simone Weil, Mandela, Madre Teresa de Calcutá e tantos que verdadeiramente conheceram a dor do sofrimento do outro, refletiram sobre a missão do cuidado e transformaram sua força espiritual em ações e obras que salvaram vidas e almas.
Para completar esta precária relação que nos coloca juntos da grandeza humana, dois exemplos de notável simplicidade passaram a habitar a memória da eternidade: O Papa Francisco e José Alberto Pepe Mujica.
Ambos cumpriram missões admiráveis, ocupando poderes distintos, porém com sonhos convergentes. O Papa cumpriu o papel de um líder espiritual deixando que o humano transbordasse a visão do mundo real a ser transformado numa opção consciente pela fraternidade, solidariedade global em favor dos pobres, dos marginalizados e o cuidado com a natureza em comunhão indissolúvel.
Sem as “divisões”, ironizadas por Stalin, o Papa Francisco usou a força quando deu de si o maior exemplo, ao revelar, sem afrontas aos símbolos, ritos litúrgicos, a virtude da simplicidade e, ao mesmo tempo, usar uma grandiosa coragem política ao enfrentar as mais sensíveis questões atuais que ameaçam a paz e a integridade planetária.
Importante mencionar a firmeza e com que enfrentou os escândalos de abuso sexual dentro da Igreja e o equilíbrio no ritmo prudente de avançar com reformas mais ousadas. Suas palavras de sabedoria e amplitude de visão civilizatória estão escritas em duas preciosas encíclicas A Laudato Si (2015) e a Fratelli Tutti (2020).
Na primeira, um primor de sabedoria e consciência cristã ensina: “139. Quando falamos de ‘meio ambiente’, fazemos referência também a uma particular relação: a relação entre a natureza e a sociedade que a habita. Isto impede-nos de considerar a natureza como algo separado de nós ou como uma mera moldura de nossa vida. Estamos incluídos nela, somos parte dela e compenetramo-nos”.
Na segunda, Francisco revela um sonho: “n. 8 Sonho com uma única humanidade, como caminhantes da mesma carne humana, como filhos desta mesma terra que nos abriga a todos, cada qual com a riqueza de sua fé ou das suas convicções, cada qual com sua própria voz”.
O outro admirável personagem, José Alberto Pepe Mujica, viveu e morreu floricultor. Vem daí uma perfumada e bela trajetória em que semeou ideias com as armas do guerrilheiro; sofreu a desumanidade da perseguição e da tortura que somente uma bravura incomum é capaz de suportar 13 anos de prisão sendo 11 largado numa solitária. Sobre a extrema perversidade da reclusão, deixou uma frase impressionante: “Não seria quem sou se não fosse a solidão da cela”.
Do conflito da luta armada, como líder dos “Tupamaros”, à conversão quanto aos métodos de mudança, passou-nos a seguinte lição, sem renunciar ao socialismo: “Aprendemos que a luta do tudo ou nada é o melhor caminho para não mudar nada. A maior parte dos países que estão socialmente à frente têm uma vida política serena, de pouca épica, poucos heróis e poucos vilões”. Em 2010, discurso de posse na Presidência.
Homem de ideias, filósofo (se autodefinia como um estoico) praticava o que pregava: “A sobriedade é uma forma de viver, uma luta para manter a liberdade. Se deixo que as necessidades se multipliquem ao infinito, tenho que viver para cobrir as necessidades e não sobra tempo para fazer o que me motiva. Pobre é quem precisa muito”. Político, era um homem de ação consciente: “Governar é bem mais difícil do que pensávamos. Que os recursos públicos são finitos e as demandas infinitas”. E, com refinado senso de humor, afirmou: “Deveria eleger-se um comandante dos bombeiros: sua função mais importante é apagar incêndios.
Para concluir, valho-me da respeitável jornalista e documentarista Dorrit Harazim que, na edição de 18/05/25 de O Globo, definiu, no título do artigo, a brilhante síntese sobre nosso personagem: “Mujica foi, antes de tudo, um homem inteiro”.
Gustavo Krause foi ministro da Fazenda
What's Your Reaction?






