Aborto: 5 mulheres são denunciadas à polícia por mês em São Paulo
Profissionais de saúde e hospitais estão entre os autores das notificações. Especialistas explicam o impacto da criminalização do aborto
Simone Ferreira, de 36 anos, procurou um hospital após sentir fortes dores abdominais acompanhadas de sangramento intenso, em março deste ano, devido a um aborto autoprovocado. Gabriela Evangelista, de 22 anos, foi à emergência depois de tomar comprimidos abortivos e ter uma hemorragia, em maio. Brenda Vieira, de 19 anos, chegou ao pronto-socorro com fortes cólicas devido à interrupção proposital de uma gravidez não desejada, também em maio. As três mulheres foram criminalizadas por equipes jurídicas das unidades hospitalares em que foram atendidas e por profissionais de saúde.
Elas fazem parte de uma estatística que engloba, em média, cinco mulheres denunciadas à polícia por mês, no estado de São Paulo, devido a abortos voluntários. O levantamento foi feito pelo Metrópoles, a partir de dados obtidos via Lei de Acesso à informação (LAI), por meio da Secretaria da Segurança Pública (SSP).
De janeiro de 2020 a junho de 2025, cerca de 500 boletins de ocorrência por aborto foram registrados em São Paulo. Do total, 67.9% são de casos induzidos pela própria mulher ou por pedido dela. Além disso, do todo, 4,29% envolvem menores de idade, conforme notificações à Polícia Civil. Há também episódios definidos como “abortos provocados por terceiros sem o consentimento da grávida”. Esses representam 32.1% dos dados totais no estado.
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Atualmente, no Brasil, não há protocolo hospitalar determinando que profissionais de saúde comuniquem à polícia os casos de mulheres que procuram atendimento médico após um aborto. Os médicos e enfermeiros, inclusive, têm constitucionalmente a prevalência do sigilo profissional.
Nesse sentido, o Ministério da Saúde considera que “o sigilo médico e o dever de cuidado prevalecem, garantindo a segurança e a privacidade da paciente”. “Os profissionais de saúde atuam com base na condição clínica apresentada pela paciente, garantindo o atendimento necessário para sua saúde e bem-estar”, informou a pasta.
De onde vêm as denúncias?
Pós-doutora em saúde pública, a pesquisadora do Anis Instituto de Bioética, Luciana Brito, classifica as denúncias por aborto como perseguições. “A gente tem visto que essa mulher entra no sistema de Justiça porque ela está sendo punida desde o primeiro dia. Essa mulher atravessou um sistema de saúde para dar uma atenção, um cuidado em saúde por uma emergência obstétrica, e ela passa a ser colocada nesse lugar de uma potencial criminosa”, destaca a codiretora da instituição.
Segundo o estudo dos processos judiciais sobre aborto no Brasil ao longo de 10 anos, publicado pelo instituto, quebra de sigilo profissional e uso de provas ilícitas são algumas das violações relacionadas aos processos judiciais por aborto voluntário.
O hospital acaba sendo um local de risco: das denúncias com origem identificada, 46,2% partiram de profissionais de saúde. Além disso, o estudo mostra que mulheres e adolescentes, denunciadas até pelo Conselho Tutelar, sofrem maus-tratos e são perseguidas nos estabelecimentos de saúde.
“Punição”
Segundo a coordenadora nacional do Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (Cladem/Brasil), Rubia Abs da Cruz, uma das punições das mulheres condenadas pela Justiça é o trabalho com crianças. “Os efeitos são perversos porque, em geral, determina-se que as mulheres trabalhem em creches, em espaços com crianças. É uma punição porque se realizou o aborto; é assim que acaba acontecendo”, afirma a advogada especialista em direitos humanos e lei do aborto.
O périplo dessas mulheres aprofunda ainda mais as desigualdades sociais já existentes. “São mulheres que não tinham condições de ter uma criança. Muitas vezes, pode até ter ocorrido violência, mas muitas não sabem que caminho percorrer para realizar o aborto legal”, diz.
“Existe uma desinformação muito grande e muito medo, justamente porque tem a questão de criminalizar. Então, essas mulheres podem ficar grávidas de um estupro, de uma retirada de camisinha não consentida, entre outras questões, inclusive o não consentimento dentro de um casamento”, completa.
As mulheres são presas?
A pesquisadora Luciana Brito reforça o perfil das mulheres criminalizadas: “A gente sabe quem são as mulheres criminalizadas. São as mulheres negras, periféricas, com um regime de trabalho que é mais informal.”
Ela conta que são impostos longos percursos punitivos, mesmo sem condenação em regime fechado. Segundo a pesquisadora, o castigo e o estigma ocorrem desde o momento em que a denúncia à polícia é posta.
“São experiências muito dolorosas e coercitivas, que vão desde exposição ao Tribunal do Júri à privação de liberdade em algum momento do processo. Ela vai para a delegacia, é presa por alguns dias, tem que pagar uma fiança ou vai para um regime de uma prisão domiciliar”, acrescenta.
Entre as ações analisadas pela Anis, mais de 80% das pessoas denunciadas por aborto se tornam rés. Além disso, 17% do total analisado são registrados apenas como corrés, sem detalhes sobre o andamento dos casos.
Do total de 607 desdobramentos processuais avaliados, 37,4% das pessoas tiveram prisões preventivas decretadas em algum momento durante o itinerário de criminalização. A preventiva é a prisão que se impõe como medida de cautela ou de prevenção, mesmo sem haver ainda condenação.
O instituto, no entanto, não teve acesso a números sobre pessoas presas em cadeias por aborto, o que dificulta o trabalho dos formuladores de políticas públicas voltadas a essas vítimas. “Não há (números) pelo Departamento Penitenciário Nacional, há uma desagregação de dados pelo crime de aborto autoprovocado ou aborto provocado por outras pessoas com o consentimento da mulher. E esse é um problema, porque, se esse dado não está aberto, a gente não consegue, inclusive, criar política pública e entender qual o perfil dessa população hoje nos presídios”, aponta a pesquisadora.
Atendimentos pelo SUS
De acordo com o Sistema de Informações Hospitalares do SUS (SIH/SUS), do Ministério da Saúde, no estado de São Paulo, de janeiro de 2020 a junho de 2025, hospitais públicos realizaram 144 mil internações pós-aborto para curetagem, procedimento que envolve raspagem do útero por meio de instrumentos cirúrgicos; considerado invasivo pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
No mesmo período, em São Paulo, segundo o sistema do SUS, foram registrados mais de 12 mil atendimentos de aspiração manual intrauterina (Amiu). Esse procedimento é recomendado pela OMS por ser menos agressivo.
Todos os dados incluem abortos “espontâneos ou por razões médicas”, sem distinção. “O princípio fundamental da saúde é o cuidado integral da paciente, garantindo o acolhimento, diagnóstico e tratamento de complicações decorrentes de um abortamento, sem que caiba à equipe de saúde investigar a causa”, reforçou o Ministério da Saúde via LAI.
Descriminalização
Atualmente no Brasil, o aborto é permitido em três circunstâncias: risco de vida para a gestante, gravidez decorrente de estupro e casos de anencefalia do feto.
O Código Penal Brasileiro prevê pena de detenção de um a três anos para a mulher que provocar o próprio aborto ou consentir que outra pessoa o realize. Também criminaliza quem faz o aborto sob consentimento da gestante, com pena de reclusão de um a quatro anos.
No Supremo Tribunal Federal (STF), a discussão sobre a descriminalização do aborto está em andamento, a partir de uma ação do Partido Socialismo e Liberdade (PSol). A Corte tem 2 votos favoráveis: dos ministros aposentados Rosa Weber e Luís Roberto Barroso.
“Seria muito importante descriminalizar. Após isso, teria um outro caminho que seria a implementação, no sentido de ter serviços de saúde que realizassem o aborto, porque nós sabemos que existem objetores médicos e também dentro da enfermagem, que não querem realizar o aborto no Brasil, mesmo quando é um aborto legal; objeção de consciência, provavelmente por questões religiosas”, aponta Rubia Abs da Cruz.
No cenário de criminalização, abortos provocados no país ocorrem de forma ilegal e uma quantidade expressiva não chega ao sistema de saúde nem à polícia. Apesar dos riscos, mulheres se submetem à clandestinidade. Além de mortes, as sequelas podem ser infecções, perfurações uterinas, hemorragias e infertilidade.
A OMS estima que 45% dos abortos no mundo sejam feitos em condições precárias, concentrados principalmente em países com leis restritivas, como o Brasil. Para especialistas, a redução dos abortos inseguros está ligada à educação sexual, acesso a contraceptivos e descriminalização.
*Os nomes reais das mulheres que fizeram aborto foram preservados nesta reportagem.
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