Como Drummond mudou para sempre a vida de duas poetas
Entre os 3 poetas, Drummond, Adélia e Cora, há uma geografia triangular que os interliga uns aos outros: Divinópolis, Goiás Velho e Itabira

Carlos Drummond de Andrade já era o consagrado poeta da língua portuguesa quando, entre os anos 1975 e 1980, revelou ao país duas das mais importantes poetas brasileiras, Adélia Prado e Cora Coralina, em folhas de papel: duas crônicas publicadas no Jornal do Brasil colocaram a mineira e a goiana ao circuito literário nacional.
No caso de Adélia, nem foi uma crônica inteira: foram quatro parágrafos e meio de um texto que começava tratando das atividades da Associação Protetora dos Animais, pulava para São Francisco e terminava apresentando ao país uma poeta desconhecida da pequena Divinópolis (MG). “Adélia – escreveu Drummond – é lírica, bíblica, existencial”, e dedilhava os cinco versos que se tornariam alguns dos mais conhecidos da poeta: “Uma ocasião meu pai pintou a casa Toda de alaranjado brilhante Por muito tempo moramos numa casa como ele mesmo dizia constantemente amanhecendo”.
Àquela altura, 1975, Adélia ainda não tinha publicado nenhum livro. Mas corria atrás: havia mandado cópias do manuscritos para alguns contatos. Os papéis soltos haviam chegado à mesa de Drummond e, por certo, espanaram a poeira dos dias, como dá pra perceber pelo que ele escreveu na edição de 09/10/1975 do JB: “Nascida à beira-da-linha, o trem-desterro para ela, “atravessa a noite, a madrugada, o dia, atravessa minha vida, virou só sentimento”.
E [Adélia] diz, entre outras: “Eu gosto é de trem-de-ferro e de liberdade”. “Eu peço a Deus alegria pra beber vinho ou café, eu peço a Deus paciência para pôr meu vestido novo e ficar na porta da livraria, oferecendo meu livro de versos, que pra uns é flor de trigo, pra outros nem comida é”. E conclui Drummond, dedos em brasa: “Adélia é fogo, fogo de Deus em Divinópolis. Como é que eu posso demonstrar Adélia, se ela ainda está inédita, aquilo de vender livro à porta da livraria é pura imaginação, e só uns poucos do país literário sabem da existência desta grande poeta à beira-da-linha?”.
Adélia estava em casa, naquele começo de outubro de 1975, quando um vizinho chegou gritando e balançando no ar as páginas soltas do jornal. Desde então, a carreira literária de Adélia Prado, que neste 2025 completa 90 anos, avançou para muito, muito além da linha do trem.
Cinco anos depois, Drummond moveu novamente as placas tectônicas da literatura brasileira e outra poeta estremeceu diante de uma folha de papel: o poeta maior tinha escrito uma crônica sobre uma desconhecida goiana e tinha colocado o nome dela bem grande, em caixa alta, no título do texto: “CORA CORALINA, DE GOIÁS”, desse jeito.
“Este nome não inventei, existe mesmo, é de uma mulher que vive em Goiás: Cora Coralina Cora Coralina, tão gostoso pronunciar este nome, que começa aberto em rosa e depois desliza pelas entranhas do mar surdinando música de sereias antigas e de dona Janaína moderna.
Cora Coralina, para mim a pessoa mais importante de Goiás. Mais do que o Governador, as excelências parlamentares, os homens ricos e influentes do Estado. Entretanto, uma velhinha sem posses, rica apenas de poesia, de sua invenção, e identificada com a vida como é, por exemplo, uma estrada. Na estrada que é Cora Coralina, passam o Brasil velho e o atual, passam as crianças e os miseráveis de hoje.
O verso é simples, mas abrange a realidade varia. Escutemos: “Vive dentro de mim uma cabocla velha de mau olhado, acocorada ao pé do borralho, olhando pra o fogo”. “Vive dentro de mim a lavadeira do rio Vermelho. Seu cheiro gostoso dágua e sabão”. “Vive dentro de mim a mulher cozinheira. Pimenta e cebola. Quitute bem-feito”. “Vive dentro de mim a mulher proletária. Bem linguaruda, desabusada, sem preconceitos”. “Vive dentro de mim a mulher da vida. Minha irmãzinha… tão desprezada, tão murmurada”.
Entre os três poetas, Drummond, Adélia e Cora, há uma geografia triangular que os interliga uns aos outros: Divinópolis, Goiás Velho e Itabira, e um modo brasileiro defazer poesia na cadência do mais profundo interior.
* Este texto representa as opiniões e ideias do autor.
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