Condenado a 25 anos por roubo em SP tenta provar inocência na Justiça
Homem condenado por roubo sofreu reconhecimento irregular e teve provas ignoradas no processo. Identificação se baseou na cor dos olhos

Um homem condenado a 25 anos de prisão por roubo busca provar sua inocência na Justiça paulista. Alexsandro Cantuária de Souza (foto em destaque, à esquerda) foi processado por supostamente ter participado de um assalto à casa de um promotor em 2020, em Bertioga, no litoral de São Paulo.
O comerciante foi acusado de participar do crime pelas semelhanças físicas que tem com um dos assaltantes, identificado como Felipe Benício Ramos (foto em destaque, à direita).
Alexsandro chegou a ser absolvido em primeira instância, pela 1ª Vara do Foro de Bertioga, do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), por não haver provas suficientes de sua participação no crime. Contudo, ele foi sentenciado em segundo grau a 25 anos, 10 meses e 10 dias de reclusão, em regime inicial fechado, após recurso do Ministério Público do estado (MPSP). Nesta etapa, a Justiça considerou que as provas apresentadas pela acusação eram legítimas e suficientes para condenação.
O réu, então, entrou com recursos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) e no Supremo Tribunal Federal (STF), que mantiveram a condenação. O processo transitou em julgado na última semana, e um mandado de prisão já foi expedido. A defesa de Alexsandro se prepara para solicitar uma revisão criminal, que deve ser feita por um colégio de desembargadores do TJSP.
O crime
- Na manhã de 10 de junho de 2020, três assaltantes invadiram a casa do promotor de justiça já aposentado Marcelo Milani, em Bertioga.
- Por meio de ameaças com arma de fogo, facão e restrição de liberdade, os criminosos extorquiram a família do promotor e roubaram itens como um carro, uma televisão, computadores e celulares.
- Eles também obrigaram que as vítimas fornecessem as senhas dos cartões de crédito e débito, autorizando operações financeiras no valor de mil reais.
- Um dos envolvidos, André da Silva Fagundes, foi condenado pelo crime.
- Outro homem apontado como um dos assaltantes, Ariel Henrique Alvarez, foi morto em confronto com a polícia.
- Restou a identidade do terceiro suspeito.
Confusão pela cor dos olhos
Em depoimento, a família informou aos investigadores que um dos assaltantes tinha olhos verdes bem acentuados. Este fato teria sustentado toda a acusação contra Alexsandro.
“Após esta declaração das vítimas, a Autoridade Policial começou uma verdadeira ‘caça às bruxas’, pois, sem qualquer ato investigativo e induzindo as vítimas a reconhecerem o paciente por meio do aplicativo de mensagens WhatsApp (ninguém foi até a Delegacia) – se chegou ao consenso que o indivíduo de olhos verdes, que teria praticado o crime, seria o paciente Alexsandro Cantuária, única e exclusivamente em razão dos olhos verdes”, afirmou a defesa do acusado em recurso ao STJ.
Leia também
-
São Paulo
Defensoria questiona uso de reconhecimento facial no Carnaval de SP
-
Guilherme Amado
Reconhecimento facial nos estádios vem violando leis, diz estudo
-
Brasil
Sem câmera: condenados pedem inocência no STJ ao contestar prova de PM
-
Brasil
Lula diz desejar a Bolsonaro “presunção de inocência que eu não tive”
“Disseram que eram três assaltantes, e um deles possuía olhos verdes e marcas de acne no rosto. E aí a polícia simplesmente me pega na rua”, disse Alexsandro, que foi levado a uma delegacia após o reconhecimento para tirar fotografias e ter as impressões digitais recolhidas.
“O verdadeiro assaltante, que é o tal de Felipe Benício Ramos, realmente é a minha cara”, destacou.
Reconhecimento irregular
Para o advogado de Alexsandro, Henrique Perez Esteves, e especialistas ouvidos pela reportagem, o comerciante passou por reconhecimento irregular, que resultou na condenação.
De acordo com documentos obtidos pelo Metrópoles, a autoridade policial responsável pela investigação inicial pediu que as vítimas do crime reconhecessem o suspeito por meio do WhatsApp, o que é inadequado.
Cinco dias após o roubo, duas vítimas fizeram o reconhecimento fotográfico, apontando, sem dúvidas, que um quarto nome seria o criminoso. Trata-se de Hélcio Francisco Cabral Victorino, conhecido como “Helquinho”, membro do Comando Vermelho e até então foragido da Justiça. No entanto, Alexsandro já estava qualificado pela autoridade policial.
Dois dias depois, em 17 de junho de 2020, houve uma segunda tentativa de reconhecimento fotográfico, com uma terceira vítima, que apontou uma foto de Alexsandro. Na ocasião, uma das testemunhas que já havia indicado Helquinho, voltou atrás e também reconheceu o comerciante como um dos assaltantes. Em juízo também não houve reconhecimento do réu.
Diante disso, a defesa concluiu que as vítimas estavam em dúvida sobre a identidade do terceiro assaltante, que usava máscara durante o roubo. Restava apenas a certeza de que o criminoso tinha olhos claros.
3 imagens
Fechar modal.
1 de 3
A cor dos olhos sustentou a acusação contra Alexsandro Cantuária (esquerda). Segundo a defesa, Felipe Benício Ramos (direita) é o verdadeiro culpado pelo crimeMaterial cedido ao Metrópoles2 de 3
Alexsandro tem três filhas pequenasMaterial cedido ao Metrópoles3 de 3
O comerciante trabalha em um quiosque na Praia de Enseada, no Guarujá, no litoral de São PauloMaterial cedido ao Metrópoles
“Um problema muito grande é mostrar somente um rosto e pedir para que se reconheça, o que se chama de show-up. Esse é, unanimemente, entre todos os pesquisadores, a pior maneira de fazer um reconhecimento de pessoas”, disse o psicólogo William Cecconelo, doutor em psicologia cognitiva. Ele destaca que a testemunha costuma ter uma memória “muito frágil”.
Estudos indicam que, mesmo entre as pessoas que fazem o reconhecimento com “muita confiança”, ainda há uma margem de erro de 50%, informou o especialista. “Ou seja, tão eficaz quanto jogar cara ou coroa”, disse.
A advogada criminalista e diretora executiva do Instituto de Defesa do Direito de Defesa (IDDD) Marina Dias endossa que Alexsandro passou por reconhecimento irregular. Ela criticou o uso da técnica show-up, argumentando que o método pode influenciar a memória de uma testemunha.
“No momento em você mostra uma imagem, a pessoa que passou por um trauma começa a buscar dentro da memória uma imagem para ver se cabe com aquela memória que foi apresentada. Ela é imediatamente contaminada. Na hora que essa mesma imagem é mostrada, num outro momento, num reconhecimento, mesmo que o reconhecimento tenha sido feito juntando outras fotografias que sejam iguais, de pessoas parecidas, no mesmo formato e etc., aquela pessoa já viu uma daquelas imagens, então ela já está contaminada”, disse.
Delegado omitiu laudos que provariam inocência
Além do potencial reconhecimento irregular, documentos que provariam a inocência de Alexsandro foram omitidos do processo, alega a defesa do comerciante. Um laudo papiloscópico feito pela Polícia Civil, que analisa as impressões digitais, e a geolocalização do celular do acusado, enviada pelas operadoras de telefonia, teriam sido ignorados pelo delegado titular de Bertioga José Aparecido Cárdia, responsável pela apuração do caso e atualmente aposentado.
O laudo, feito pelo Instituto de Identificação Ricardo Gumbleton Daunt (IIRGD), mostrou que, entre os 19 fragmentos de impressões papilares e os 114 arquivos de imagens colhidos da cena do crime, não haviam impressões digitais de Alexsandro.
Um dos fragmentos, encontrado na porta do veículo da vítima, foi identificado como sendo de Felipe Benício Ramos.
Uma nota técnica do instituto mostra que o laudo foi enviado à autoridade policial duas vezes – em 9 de novembro de 2020 e em 5 de fevereiro de 2021. Nesse meio tempo, em dezembro de 2020, o delegado Cárdia chegou a solicitar informações ao IIRGD sobre a perícia que indicava Felipe como presente na cena do crime.
No entanto, essas informações não foram anexadas aos autos e nem reveladas em audiência. O ofício só foi juntado ao processo em setembro de 2022, após a condenação de Alexsandro.
O documento que mostrava a geolocalização do celular do comerciante no momento do crime também foi ignorado. De acordo com as operadoras de telefonia, na manhã do roubo, o réu não estava em Bertioga, mas no Guarujá, a mais de 50 km da casa do promotor de justiça.
Para Alexsandro e o advogado, o delegado Cárdia deliberadamente ignorou as provas que sustentariam a inocência do comerciante. Por isso, o oficial teria cometido fraude processual e mentido em testemunho, o que motivou a formalização de uma denúncia à Corregedoria da Polícia Civil (veja mais abaixo).
Dias apontou que, mesmo que o delegado não tenha anexado os documentos ao processo, o próprio MPSP e o juiz do caso deveriam ter exigido esses laudos. “[Eles] deveriam sentir falta dessas provas”, disse.
Como deve ser feito o reconhecimento de pessoas no Brasil
O reconhecimento de pessoas foi regulamentado no Brasil em 1941, com a promulgação do Código de Processo Penal (CPP, artigo 226). Após uma série de inconsistências em casos criminais, como identificação a bordo de viaturas ou via WhatsApp no estilo show-up, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu a resolução n. 484/2022, que aprofunda o que já estava previsto no CPP.
De acordo com a resolução do CNJ, o reconhecimento deve ser realizado apenas uma vez, pois a memória humana é maleável e pode ser contaminada por exposições repetidas ao mesmo suspeito, mesmo que inocente. Reconhecimentos repetidos, portanto, não são considerados confiáveis.
Veja qual a forma mais adequada de realizar o procedimento:
- Antes do reconhecimento, deve ser realizada uma entrevista com a vítima ou testemunha para coletar uma descrição detalhada do suspeito e do crime. As perguntas devem ser abertas, sem direcionar o depoimento.
- As instruções dadas pelos agentes às testemunhas devem ser claras e imparciais, destacando que pessoa investigada pode ou não estar entre as apresentadas. Nesse sentido, é preciso evitar qualquer informação que sugira que o culpado estará presente.
- Também deve haver um alinhamento justo, chamado de fair lineup. O suspeito deve ser apresentado junto com, no mínimo, outras 4 pessoas não relacionadas ao fato que se assemelham às características descritas pela vítima ou testemunha. Ninguém deve se destacar indevidamente.
- A vítima ou testemunha deve registrar, imediatamente após o reconhecimento e com as próprias palavras, o grau de confiança nas informações que deu – como “pouco confiável” ou “muito confiável”.
- A inclusão de uma pessoa ou de sua fotografia no procedimento deve ser embasada, evitando medidas investigativas genéricas e arbitrárias.
- O procedimento de reconhecimento deve ser integralmente gravado em áudio e/ou vídeo para promover transparência e permitir a avaliação da integridade da prova.
Revisão criminal
Mesmo sem o laudo papiloscópico e a geolocalização do celular de Alexsandro, a Justiça considerou, em segunda instância, que outros elementos provam a participação do comerciante no crime – tese que foi mantida pelo STJ e pela segunda turma do STF.
Na última semana, o processo que julgou Alexsandro transitou em julgado, esgotando todos os recursos da defesa. Um mandado de prisão foi expedido e, agora, o advogado e o réu se preparam para pedir uma revisão criminal do caso, que deve ser julgada por um Órgão Especial (OE) do TJSP.
“Esses laudos nós utilizamos em vários habeas corpus, levamos para o STF, STJ, e foi absolutamente ignorado. Por que foi ignorado? Porque essa prova, entre aspas, não foi produzida dentro do processo. Ela surgiu depois que o processo já estava decidido. Então, a única forma agora é entrar com uma revisão criminal, com base nessa prova nova”, explicou Perez.
Segundo o defensor, uma turma de 10 desembargadores do TJSP vai decidir se vão reconhecer efetivamente a inocência de Alexsandro, ou se vão manter a condenação.
Antes disso, Henrique deve entrar com uma ação de justificação criminal, para que os laudos sejam homologados como provas no processo.
Afastado da família
Durante o andamento do processo, Alexsandro chegou a ficar seis meses preso, distante da família. Casado e pai de três meninas, a mais nova com um ano de idade, o comerciante teme passar por uma separação do tipo novamente.
“Eu tenho uma bebezinha de um ano. Tenho três filhas. A pessoa, quando é injustiçada, não é só ela, é uma família inteira que sofre”, disse à reportagem. “É muito dolorido mesmo”, enfatizou.
Com o mandado de prisão expedido, o comerciante precisou cortar o contato com a reportagem. Yasmin Pitta, esposa de Alexsandro, afirmou ao Metrópoles que a situação em casa está “complicada”, com as crianças perguntando sobre o pai. “Não tem sido fácil”, disse.
Dias destacou que, mesmo que o homem seja absolvido após a revisão criminal, “o que ele já sofreu é muito grave”. Para a advogada, além dos traumas causados à família do comerciante, há também danos ao judiciário brasileiro.
“Isso é muito ruim para a Justiça, para o judiciário, porque isso traz um descrédito para o judiciário, traz uma insegurança jurídica, traz uma desconfiança. E sempre que uma pessoa está sendo presa ou processada com bases em provas frágeis, injustamente, tem uma outra pessoa que foi responsável por aquele crime e que não está sendo responsabilizada”, afirmou.
Felipe Benício, que teve a digital encontrada no carro da vítima de roubo, está preso no Centro de Detenção Provisória (CDP) de Mogi das Cruzes desde outubro de 2023, por homicídio e roubo majorado. Na data do assalto à casa do promotor, em junho de 2020, ele estava em liberdade condicional, benefício que havia conquistado três meses antes, enquanto cumpria pena por um roubo cometido em 2016.
O que diz a SSP
A denúncia feita por Alexsandro contra o delegado Cárdia na Corregedoria da Polícia Civil foi arquivada. Segundo a Secretaria da Segurança Pública (SSP), uma apuração preliminar foi instaurada por meio da 6ª Corregedoria Auxiliar, em Santos, para apurar os fatos. “O procedimento foi aplicado e arquivado em setembro de 2024”, disse a pasta.
Questionada sobre a conduta do delegado, a SSP afirmou que mantém o posicionamento acima.
O Metrópoles não localizou a defesa de Cárdia. A reportagem também contatou a defesa de Felipe, mas não obteve retorno até a última atualização desta reportagem. O espaço segue aberto.
What's Your Reaction?






