Espaços públicos. Públicos? (por Jaime Pinsky)
A privatização do espaço público vem sendo um dos grandes problemas nas cidades brasileiras

O surgimento das cidades, a partir de dez mil anos atrás, é um marco civilizatório. Não aconteceu por acaso, não aconteceu de repente, não aconteceu pela vontade, mesmo soberana, de alguém, mas como resultado de os homens e mulheres daquela época sentirem necessidade de se agrupar para se proteger mutuamente, invocar seus deuses coletivamente, construir obras que pudessem responder às necessidades de todos, ou de parte substancial do grupo estabelecido em uma determinada região.
Confesso que, como historiador, fiquei profundamente emocionado ao conhecer Jericó, tida como provável primeira cidade concebida da História. Observar um modesto riacho devidamente domado por uma canalização precária, uma construção levantada com pedras e argamassa que resistiu aos séculos, a própria sobrevivência de grupos humanos no meio de uma região desértica, tudo isso desnuda os esforços efetuados para domar melhor a natureza e colocar os bens da Terra a nosso serviço.
Não por acaso, desde aquela época, as cidades, em qualquer região do mundo, têm espaços públicos e essa é uma característica inerente a elas. Não interessa se são lugares de culto, ou de manifestações de apoio ou de oposição ao líder de cada época, locais de reunião para feiras ou trocas culturais, as praças são marcas das cidades. Muitos bairros de nossas cidades têm pracinhas que são, até hoje, ponto de reunião de grupos de moradores.
Mas não só as praças. As ruas também são espaços públicos, como comemorava o grande poeta Castro Alves, secundado pelo não menos brilhante Caetano Veloso, exaltando os lugares de sua Salvador. Enfim, praças, ruas, prédios públicos, hoje temos Jericós espalhadas pelo mundo, democratizando as estruturas urbanas, colocando o coletivo à disposição de todos e cada um, permitindo o usufruto do bem comum. Porém…
A privatização do espaço público vem sendo um dos grandes problemas nas cidades brasileiras. Sob o pretexto de segurança, vemos ruas inteiras, ou trechos delas sendo fechados para passagem de veículos e mesmo de pedestres, obrigando uns e outros a encompridar seu trajeto para que os privilegiados moradores daquele quarteirão gozem de uma sensação não acessível aos demais cidadãos. Colocar mesas e cadeiras na calçada como extensão do restaurante, ou do boteco, também tem sido uma prática cada vez mais utilizada, sem nenhuma preocupação com quem precisa atravessar aquele trecho, em uma ofensa evidente ao direito de ir e vir, de caminhar sem obstáculos. Em alguns casos, o estabelecimento é licenciado para sair de seu espaço e se espreguiçar em direção ao espaço público, em outros, a ocupação se dá como fato consumado, à revelia da lei.
Enfim, há numerosas formas de ocupar o espaço público e os agressores contam com o cansaço do cidadão e o beneplácito da autoridade pública, seja de um simples fiscal, seja da prefeitura ou mesmo do Governo do Estado. É o que está acontecendo agora com um parque da maior cidade da América do Sul, que está sofrendo um processo de privatização indevida, irregular e altamente prejudicial aos cidadãos. Falo do Parque Villa-Lobos, que, para quem não sabe, foi resultado de cuidadoso trabalho de limpeza e adequação social, pois, no passado, era um lixão. Muito dinheiro público foi gasto para tornar o espaço limpo, muito talento foi necessário para urbanizá-lo, muito tempo para que pudesse atrair pássaros. A grama cresceu, bancos rústicos foram instalados, passeios pavimentados. As pessoas começaram a aparecer. Não, não apenas vizinhos moradores do Alto de Pinheiros, região valorizada, mas famílias vindas de Carapicuíba, Osasco, atletas da cidade toda chegando para dar uma corridinha matinal, pessoas a procura de um pouco de ar puro. O parque se incorporou à região e à cidade. Dava gosto ver as pessoas chegando com suas sacolas de piquenique, as crianças correndo livremente pelo grande espaço (não é essa a função primordial de um parque?), os idosos sentando-se à sombra de uma árvore, a molecada chutando uma bola, a paquera rolando. Até que…
Até que o parque foi entregue a uma empresa privada. Supostamente para melhorar o que já era bom. As mudanças foram rápidas. Algumas evidentes: 1 – falta de manutenção. As pessoas caminham em meio a buracos no piso que não sofre reparos adequados; adultos torcem os pés, crianças se machucam, cadeirantes têm dificuldades em passear no parque. 2 – espaços fechados, bem cuidados, mas apenas podendo ser utilizados por pagantes, os cidadãos especiais… 3 – poluição visual com propagandas de empresas particulares. 4 – Poluição sonora. 5 – Abandono de espaços como o Orquidário.
Moral da história? Traição ao próprio sentido e objetivo das cidades. Não foi para isso que Jericó e outras cidades, todas elas, foram criadas. Temos ou não governantes com função de fazer com que os espaços públicos sejam de fato públicos?
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