Lavoisier Cunha: a bolha como metáfora, reverbera e se rompe

Por Márcio de Lima Dantas Professor de Literatura Portuguesa da UFRN   E a orla branca foi de ilha em continente, Clareou, correndo, até ao fim do mundo, E viu-se a terra inteira, de repente, Surgir, redonda, do azul profundo. Fernando Pessoa   1. Lavoisier Cunha nasceu em Assú, RN (1961). Teve como mestra a […]

Dezembro 7, 2025 - 11:30
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Lavoisier Cunha: a bolha como metáfora, reverbera e se rompe

Por Márcio de Lima Dantas
Professor de Literatura Portuguesa da UFRN

 

E a orla branca foi de ilha em continente,
Clareou, correndo, até ao fim do mundo,
E viu-se a terra inteira, de repente,
Surgir, redonda, do azul profundo.
Fernando Pessoa

 

1.
Lavoisier Cunha nasceu em Assú, RN (1961). Teve como mestra a
professora Irmã Socorro, do Colégio Nossa Senhora de Fátima, em Natal,
RN. Bastante inquieto, partiu para a experimentação de outras técnicas do
desenho e da pintura.
Esse desassossego, ao não estabelecer limites nos meios visando
proporcionar resultados de grande valia estética, acabou conduzindo-o a uma
versatilidade cuja amplitude tem fronteiras bem distantes, abraçando uma
grande variedade de meios e logrando êxito na confecção de séries, tanto
monotemáticas quanto no nível expressional, com uma índole uniforme.
Com efeito, iniciou desenhando com bico de pena e depois experimentou
outras técnicas: óleo sobre tela, desenho com lápis de cor, desenho com
caneta esferográfica, acrílica e aquarela.
O material aqui manuseado como corpus é o que se encontra exposto até o
final de dezembro no Espaço de Arte e Comida do Bardallo’s, pertencente
ao boa-praça Lula Belmont. Acredito que não seja tão fácil produzir efeitos
de transparência em objetos de vidro: límpida transparência que filtra a luz,
permitindo que seja como uma bolha de sabão, com cores que conduzem a
uma individuação.
Essas bolhas, com sua luz resplandecente, integram planos de fundo nos
quais se vaza um jogo de sombras, um contraste de claro-escuro,
concorrendo para ressaltar a miríade de bolhas presentes em algumas telas.
Em outras, destacam-se pela amplitude do raio, causando um efeito estético
de alta voltagem, sobretudo quando trazem consigo as cores.
As bolhas não detêm somente a transparência. Pode ser que possuam,
insistimos, uma cor, como podemos constatar em uma tela de rara beleza:
vermelho, azul e verde, com a presença de um personagem feminino de
costas. É o que podemos encontrar, tais efeitos que resultam dos lápis de cor.
2.
Ora, a bolha é o genius loci, o principal paradigma que se apresenta nas telas
e resulta apenas do manuseio de um recurso modesto. Através desse
conhecido recurso, muito usado por crianças nas escolas, o artista mostra a
que veio e até onde pode conduzir o seu talento. Fica claro que domina o
desenho acadêmico ou realista com grande maestria, como revelam os perfis
femininos, os corpos desnudos e o semblante de um homem com barba, sem
mostrar o cenho, apenas deixando entrever os longos cabelos e a barba.
Também podemos ver silhuetas impregnadas de silêncio, como se houvesse
uma incondicional aceitação, uma resiliência face a Cronos, que escorre
apressado na forma de uma ampulheta. Talvez um sol, ao longe,
reverberando sua amarela luz, lance luminosidade em pequenos pontos,
como pequenas estrelas.
A aceitação da realidade como ela se apresenta conclama a compreender a
sintaxe inexorável dos meandros por onde escorrem os riachos da vida, em
direção ao estuário de um mar amplo, assinalando o fim de um percurso. A
vida detém seu vocabulário próprio. E, quando se estende, quando dura mais
do que o esperado, quando insiste em ficar mais um tempo, vem a reboque
laivos, locas, frestas de ciência, sabedoria, oxalá, sensatez.
3.
Parece que não sou apenas eu que o considero como um dos mais
importantes artistas do Rio Grande do Norte. Ouço outras vozes em claro e
bom som, fazendo saber que, por trás desse homem gentil e boa-praça, está
resguardada uma presença capaz de empreitadas estéticas, manuseando
recursos vários, inclusive ousando conseguir efeitos que, à primeira vista,
não parecem ser feitos com um simples lápis de cor, presente nas mochilas
escolares de crianças.
Por fim, arrisco discorrer acerca de uma metáfora que parece organizar, em
tessituras de malhas extraídas de diversos contextos, símbolos incitadores
para o espectador chafurdar em seu íntimo. Quer dizer, uma filosofia que jaz
subliminar a todo desenho dessa exposição, apresentada por Antônio Stélio,
em um texto no qual mescla reconhecimento e prosa poética impregnada de
um ritmo evocador de versos, não da cadência da prosa.
Vou me deter, neste momento, apenas sobre uma tela com seu inusitado
ajuntamento de elementos emanados de diferentes contextos. No entanto,
tudo conflui para imaginar ou inventar uma metáfora-base de todo o conjunto
dos trabalhos apresentados. O nome da exposição é LUZ.
Assemelha-se muito à flor de lótus. Está no foco central. Dessas filigranas,
a título de raízes, para dentro das águas, duas carpas (uma vermelha e outra
amarela) compõem a cena como se fossem testemunhas do eclodir de uma
bela flor da planta aquática. Do mesmo jeito em que se desce para baixo do
limite da lâmina de água, também, antípoda, elevam-se filetes verdes com
botões em cada ponta.
Há uma narrativa búdica que trata da Flor do Lótus. A metáfora esclarece
que, mesmo estando as raízes da planta aquática na lama ou em água menos
pura, essa espécie de flor desabrocha em opulenta beleza, fazendo saber que
do impuro, do que poderia ter pouco valor, há de brotar algo puro e digno de
apreciação e empatia. Eis a imagem do lótus chamando para se contemplar
um feito de rara lição.
A libélula do lado esquerdo simboliza a necessidade de renovação e
transformação. É um inseto que se caracteriza por se desenvolver como ninfa
aquática, para logo, a seu tempo de aguardo, rebentar como graciosa criatura
alada, com suas quatro transparentes asas alongadas.
Há que lembrar que uma de suas principais capacidades é a maneira como
empreende o voo. Sempre são vistas como insetos cuja rapidez e agilidade
desenvolvem muito movimento no bater de asas. Por outro lado, as tradições
presentes no imaginário relacionam as libélulas com a necessidade de
adaptar-se às circunstâncias e de aceitar a inevitabilidade da passagem do
tempo — que passa por cima da gente atualizando o calendário mental, bem
como os vincos e limitações do corpo.
Do lado esquerdo, há a indefectível bolha transparente, com uma espécie de
estrela a brilhar sobre os demais elementos presentes. Como demonstramos,
a presença da bolha é uma invariante em quase todos os trabalhos,
engendrando-se de diversas maneiras. Tanto pode ser uma taça de vinho,
uma ampulheta ou mesmo a apresentação da bolha isolada, ao lado de outros
elementos da cena.
É quase certo que a bolha, em sua fragilidade, beira com parcimônia o tempo
de existência. Sua presença que, de repente, desfaz em gotas de água sua
duração de objeto na realidade, na descrença de quem a sopra em canudos,
elaborada com sabão.
4.
Vem-me agora uma noção dos antigos gregos: ANÁNKÊ. Na mitologia, era
tida como a deusa do destino, de tudo o que tem que se cumprir, da
inevitabilidade das coisas não demandadas, tampouco consentidas pelos
sencientes. Era uma divindade primacial tão poderosa, que até os deuses do
Olimpo estavam submetidos às suas ordens, ao seu capricho, a tudo o que
era mando face ao humano. Seu atributo era o fuso na mão.
No que diz respeito ao destino, havia três deusas: as Parcas, Clotho, Láquesis
e Átropos. Representadas como fiandeiras: uma fia a linha da vida, a outra
mede o comprimento (o tempo de duração da existência de cada ser
humano), e a última, implacável, sem piedade, corta o fio. Ora, os antigos
gregos compreendiam como uma força primeira a reger o universo, com suas
galáxias engendrando movimentos e mutações, assim como o que detém a
gramática das leis pertencentes à natureza.
Enfim, pode ser resumida em um vocábulo apenas: necessidade, no sentido
do que há de se cumprir. Quase sempre está relacionada a uma fatalidade,
pois a vida só se revela com sobriedade, com moderação. “A vida é
pirangueira, é o que circula por aí. A vida é amarrada. Os deuses vendem,
quando dão” (Fernando Pessoa).
Tudo isso me faz recordar um dos mais conhecidos poemas do poeta francês
Arthur Rimbaud: À CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA, na qual
demonstra apreço ao tempo, ao conclamar em versos, quando se trata de um
reputado livro em prosa poética: Une saison en enfer. Vejamos o que diz
esse enfant terrible.

Venha, venha o tempo
Que nos enamora.
De pacientar tanto
Para sempre esqueço.

Era preciso mesmo dizer adeus ao mundo, a uma realidade de raiz amarga
que provara em Paris, plena de mediocridades indeléveis. Restava partir de
uma vez. Já entendera como tudo funcionava na famosa capital da França,
não muito diferente de outros lugares nos quais vivera. Partir era a melhor
alternativa. Essa alternativa foi Áden e o Chifre da África. No fim, tudo
acabou sendo igual. O mundo é um só. O mundo é uma bolha. Lavoisier
Cunha sabe muito bem disso.
E por onde havera de ir, e por estrada principal ou viscinais, e por rodagens
olvidadas, na qual quase ninguém passa, a pé ou de caminhão, sempre se
deparará sobre o que é inevitabilidade quando se trata do comportamento
humano, que só se altera no jeito de trajar, o resto o semblante, o timbre da
voz e olhar, pode-se não compreender a totalidade, mas uma rápida consulta
ao coração e aos oráculos interiores, permite-se uma breve classificação que,
com o decorrer de um tempo curto de convívio, ninguém é tão dissimulado
que sustente, se houver, se o for, uma máscara, uma persona.
Por fim, vejamos como a presença de bolhas no conjunto das telas remetem
à fragilidade do humano. As bolhas, com sua transparência, são de grande
fragilidade, detém átimos de tempo, o quanto durem. É quase um tempo tão
rápido de passar, – permitindo sua presença e existência – , ao desmanchar
se em um fio de água. Que ninguém se engane, essa é a gramatica universal
de um estar no mundo: para onde se for, leva-se consigo no seu surrão,
identidade e história. O que interessa é não repetir o que outrora fora
brincadeira de bolhas de sabão.

 

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