Naya: a fenda trincada na vida social ou o equívoco da vereda sem rumo

  Por Márcio de Lima Dantas Professor de Literatura Portuguesa da UFRN marciomartedantas@gmail.com   O que se perdeu foi pouco. Mas era o que eu mais amava. Henriqueta Lisboa 1. Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai, um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora tenha recebido […]

Oct 19, 2025 - 13:30
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Naya: a fenda trincada na vida social ou o equívoco da vereda sem  rumo

 

Por Márcio de Lima Dantas

Professor de Literatura Portuguesa da UFRN

marciomartedantas@gmail.com

 

O que se perdeu foi pouco.
Mas era o que eu mais amava.
Henriqueta Lisboa

1.

Naya Silva (Currais Novos, 22.10.2002) recebeu forte influência do seu pai,
um dos melhores pintores naïfs do nosso estado: Nilson dos Santos. Embora
tenha recebido essa influência, como não poderia deixar de ser, visto que
tinha um grande artista dentro de casa, acabou por marcar sua obra com um
outro vocabulário, engendrando toda uma espécie de retratos de mulheres no
qual se evidencia o semblante, como a querer mostrar diversas maneiras de
contemplar o mundo, na medida em que, como sabemos, as feições refletem
o íntimo de um estar no mundo, seja em embates ou em contemplações
líricas.
Há artistas que não se deixam domesticar por apenas um estilo. A cada gesto,
a cada composição, parecem inaugurar um campo novo, onde a tradição e a
invenção do novo andam lado a lado. Uma não se sobrepõe a outra. Naya,
com sua obra de rara sensibilidade, inscreve-se nesse terreno: ora
recuperando a gramática do popular, com suas feiras, vilarejos e figuras
camponesas, ora lançando-se às vertigens do digital, onde o eu se cinde em
fragmentos, ainda, ressignificando mitos, costurando fios de diferentes
culturas, como quem tece um bordado invisível no tecido da imaginação.
A produção de Naya é uma travessia. Travessia de mundos: o rural e o
urbano, o ingênuo e o conceitual, o local e o estrangeiro. Vejamos como isso
sucede. Comecemos pelas obras de vocação naïf: Pequeno Vilarejo, Feira
Livre e Mulher Camponesa. À primeira vista, parecem simples cenas da vida
popular, carregadas de ingenuidade. Contudo, sob a superfície vibrante de
cores, há uma gramática simbólica que exige interpretação, um querer dizer
algo por meio de signos subliminares, de imagens advindas da sua
subjetividade.
No Pequeno Vilarejo, as casas parecem feitas de uma memória infantil. Os
telhados desproporcionais, as fachadas coloridas, o traço sem perspectiva
acadêmica… Tudo aponta para uma lógica outra, a lógica do afeto. A
arquitetura aqui não precisa de cálculo, apenas precisa ser lembrança. O
vilarejo de Naya nos leva à infância coletiva de uma comunidade, o abrigo
onde ainda é possível se reconhecer pelo nome e pelo rosto. É o locus
amoenus da cultura popular, onde o espaço tanto é real quanto mítico.
A Feira Livre, por sua vez, explode em excesso cromático. Se pensarmos
com Bakhtin, a feira é espaço do carnaval popular, onde a ordem hierárquica
se dissolve, e todos, ricos e pobres, se tornam iguais no barulho das vozes. Já
a Mulher Camponesa concentra em si o arquétipo da Grande Matriarca. A
figura feminina, ligada à terra, aparece como guardiã da fertilidade e da
continuidade da vida.
Com efeito, aqui, o feminino não é apenas representação do princípio
arquetípico, ela aparece como resistência e afirmação social. Seu corpo, sua
cor, seus traços, se tornam instrumentos de empoderamento, mostrando que
a arte também pode ser espaço de insurgência e reconhecimento. Na leitura
de Naya, a força dessa presença representa resistência feminina: a
capacidade de criar, sustentar e transformar, mesmo diante das adversidades.

2.

Se no naïf a artista ancora-se na memória coletiva, nas obras digitais ela se
lança à sua subjetividade. Podemos dizer que é uma tessitura tecnológica: a
memória coletiva cede o lugar à interioridade fragmentada. Ao ocorrer a
cisão, o eu se rompe em pedaços. O quadro não oferece espaço para ser um,
são estilhaços. Cores que se recusam a se fundir, linhas que não se
reconciliam. O que está em jogo aqui é o drama do sujeito moderno: a
impossibilidade de se manter inteiro. Freud diria que se trata do retorno do
mal-estar na civilização, Lacan veria aí a fenda do sujeito, a rachadura que
nos constitui.
O espectador, ao se deter face a essa cisão, sente-se intimado a habitar essa
mesma ferida: somos todos fragmentos tentando costurar uma narrativa de
si que nunca se completa. Em contraste, o céu passa um ar de expansão. Se
ocorre a cisão dessa ideia de fratura, de fragmentação, o céu é o horizonte.
Contudo, não se trata de um céu bucólico, de paz, mas de um espaço
ambíguo: lugar da liberdade e ao mesmo tempo do vazio. Contemplá-lo é se
sentir livre, mas igualmente perdido.
Já Liberdade nos traz o paradoxo da condição humana. Não falo da liberdade
idealizada dos românticos, mas uma liberdade precária, sempre ameaçada
pela queda. Há uma forte presença do existencialismo, pois somos seres
lançados, condenados a escolher, a inventar caminhos que nunca serão
definitivos. O sentido da obra é, portanto, duplo: celebra o fato de ser livre,
mas não esconde o peso da angústia que acompanha toda escolha.
Esse vazio, essa solidão paradoxal e a fragilidade dos laços humanos não são
apenas dramas individuais: fazem parte do que chamamos de espírito da
época, o Zeitgeist. Cada era produz sua forma própria de angústia. A nossa,
marcada pela hiperconectividade, pelo excesso de imagens e pela promessa
de uma liberdade ilimitada, nos oferece, em contrapartida, uma ampla
solidão, causada pela soberba, narcisismo, infantilidade e toda uma série de
sentimentos que nos lança, como já disse, ao distrito da solidão, implicando
grande sofrimento, pranto sem conserto, melancolia oscilante.
O Ar do Tempo, que quase nos obriga, feito tirania, a se comportar de
determinadas maneiras: de ser, parecer, comparecer ao que possa ser mais
ambivalente e sempre presente, como um desprezo pelo que não foi
estipulado como o que é beleza (corpos bem feitos, exagerados, bombados,
cheios de botox etc.). Essa forma de se vestir ou a insolência da negação de
um bom dia está nos conduzindo para formas sociais lançando seus vetores
para destruir tudo o que era gentileza ou etiqueta social, no melhor sentido.
Vivemos cercados de contatos e, ao mesmo tempo, desprovidos de vínculos
profundos. É o retrato de um tempo em que o sujeito, multiplicado em perfis
e telas, se encontra cindido, fragmentado. Naya, ao apresentar obras como
Cisão e Liberdade, parece traduzir esse Zeitgeist: a existência de um ser que
habita um mundo saturado de presenças visíveis, mas pobre em presenças
reais.

3.

O terceiro eixo da obra de Naya nos coloca diante de um curioso paradoxo:
ao mesmo tempo em que se lança para o campo da arte digital, a artista
recupera mitos, ora locais, ora estrangeiros. No Folclore de Câmara
Cascudo, ela resgata narrativas do imaginário potiguar. O que poderia ser
apenas ilustração folclórica ganha significado simbólico e universal, pois os
personagens não são caricaturas, mas a representação de um inconsciente
coletivo ainda vivo. O mito, nos lembra Mircea Eliade (O Sagrado e o
Profano), não é o que restou do passado, mas uma força atuante no presente.
Ao abordar o tema em sua obra, Naya nos recorda que a força da cultura
popular permanece presente, quase como uma necessidade, mesmo em
situações onde não o reconhecemos.
Em Akai Ito, o fio vermelho do destino, mito japonês que une pessoas
predestinadas, a artista se desloca para outra tradição cultural, mas reinscreve
em sua poética um mesmo rito de um mito presente em muitas culturas. O
fio vermelho é metáfora da ligação invisível entre corpos, tempos e culturas.
No gesto de Naya, o mito oriental se funde ao repertório nordestino,
revelando que o destino humano é, no fundo, o mesmo: o desejo de ligação,
a busca por um outro que nos complete.

 

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