Talvez você não tenha TDAH
Quando os sintomas de desatenção revelam mais sobre o inconsciente do que sobre um transtorno mental

Nos últimos tempos, têm viralizado no TikTok vídeos de jovens fazendo depoimentos sobre o uso de Venvanse, um remédio indicado para tratar o transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH). Mas, nesses vídeos, os usuários mostram que estão tomando o remédio por outros motivos: para se sentirem mais animados, para aguentar festas, quando estão tristes ou para estudar e trabalhar mais. O que chama atenção é como o remédio acaba sendo visto como uma solução mágica para lidar com o mal-estar de viver em um mundo onde o desânimo e a distração parecem cada vez mais comuns.
Esse uso exagerado do Venvanse vem acompanhado de outra tendência preocupante: a de pessoas que se autodiagnosticam nas redes sociais. Muitas vezes, fazem testes online, se identificam com postagens ou usam inteligência artificial para tentar entender o que estão sentindo. Quando procuram um profissional para confirmar esses diagnósticos, nem sempre encontram o cuidado necessário.
O diagnóstico de transtorno de déficit de atenção e hiperatividade não é um diagnóstico fácil. Deve ser realizado a partir de avaliação especializada, envolvendo médicos e psicólogos, com o auxílio de diversos instrumentos clínicos e critérios diagnósticos rigorosamente definidos. E, mesmo entre profissionais, é comum encontrarmos divergências.
A concepção médica desse transtorno, classificado como um transtorno do neurodesenvolvimento, muitas vezes assume um caráter reducionista, sustentado por uma visão cerebralista, cognitivista e biológica. No entanto, se olharmos com atenção para os critérios diagnósticos do TDAH no DSM-V (Manual Diagnóstico Psiquiátrico), talvez possamos encontrar um novo ponto de vista sobre esse tipo de sofrimento — e é aqui que a psicanálise pode nos oferecer uma contribuição importante, um novo ponto de vista nessa epidemia de maus diagnósticos.
Leia também
-
Ponto de vista
“Eu amo esse infeliz”: o sintoma da depressão conjugal
-
Ponto de vista
O uso da inteligência artificial e o apagamento do desejo
-
Ponto de vista
Insônia: quando o dormir exige mais do que um chá ou um remédio
Por exemplo: uma dessas exigências para o diagnóstico é a de que pelo menos seis dos nove critérios de desatenção estejam presentes por, no mínimo, seis meses, em intensidade incompatível com o nível de desenvolvimento do indivíduo e com impacto negativo em seu desempenho social, acadêmico ou profissional. Bastaria essa para grande parte dos autodiagnósricos caírem por terra.
Esses nove critérios incluem, de maneira resumida:
- Dificuldade em prestar atenção a detalhes ou cometer erros por descuido;
- Dificuldade em manter a atenção em tarefas ou atividades;
- Parecer não escutar quando se fala diretamente;
- Não seguir instruções até o fim;
- Dificuldade para organizar tarefas e atividades;
- Evitar tarefas que exigem esforço mental prolongado;
- Perder com frequência objetos necessários para as atividades;
- Ser facilmente distraído por estímulos externos;
- Ser esquecido em atividades cotidianas.
Além disso, entre os critérios de hiperatividade encontramos comportamentos tais como: frequentemente remexe ou batuca as mãos ou os pés ou se contorce na cadeira e frequentemente fala demais (!).
Entretanto, é possível considerar que uma série considerável desses comportamentos elencados para satisfazer os critérios diagnósticos — ao menos oito desses critérios — também podem ser compreendidos em outro tipo de leitura como manifestações do inconsciente, tal como as descritas com precisão por Freud em A Psicopatologia da Vida Cotidiana (1901).
Imaginemos uma situação clínica. Uma mulher busca um terapeuta a fim de desenvolver as habilidades necessárias para ocupar uma função em um novo setor de seu trabalho. Mas ela teme que seus sintomas de TDAH possam impedi-la de exercer com maestria o novo serviço. Relata ser muito distraída, cometer erros bobos, esquecer coisas com frequência.
Para contornar esses sintomas, faz uso de Venvanse, prescrito por um médico em uma consulta realizada em 15 minutos de duração. Em determinado momento da sessão, ela diz ao terapeuta: “É por isso que estou aqui. Preciso saber como faço para ser uma boa chefe do matrimônio da empresa… do patrimônio da empresa”.
O terapeuta, caso seja um psicanalista, certamente destacará esse lapso com no mínimo uma interrogação: “Chefe do matrimônio?” Contudo, ela pode facilmente responder: “Tá vendo? Eu cometo esse tipo de erro constantemente. É meu TDAH”. E assim, como é de costume em nossa época, tentar pôr fim a qualquer responsabilidade subjetiva naquilo que disse sem intenção de dizer.
Os diversos comportamentos descritos como “erros do TDAH” podem ser entendidos pela psicanálise como atos falhos. Além dos tão conhecidos lapsos de fala (quando se tem a intenção de dizer algo, mas acabamos dizendo outra coisa), existe uma série de outros lapsos menos conhecidos pelo senso comum, são eles: lapsos de escrita (quando trocamos letras, palavras e ou pontuações no ato de escrever), lapsos de leitura (quando lemos “errado” uma palavra que não estava escrita), lapsos de audição (quando escutamos algo diferente do que foi realmente dito), lapsos de memória (quando esquecemos uma palavra, um nome, uma frase ou uma intenção — como, por exemplo, ao irmos até a cozinha, nos perguntarmos: “Mas o que eu ia fazer mesmo?”), extravios (quando acreditamos ter guardado um objeto em determinado lugar, mas não o encontramos ali), a perda de objetos (como perder a aliança na véspera do noivado), perseverações (repetições frequentes de uma mesma palavra ao falar ou ao escrever um texto, “erros de estimação”), ações casuais (movimentar a corrente do relógio, a barba, mexer partes do corpo, etc, de maneira estereotipada e despropositada), e enganos (como ter a intenção de abrir a porta do escritório, mas usar a chave de casa).
Além dessa série de “erros” que buscam transmitir alguma mensagem inconsciente, a perturbação da nossa atenção, segundo a psicanálise, acontece com frequência por efeito de um pensamento alheio que estava sendo pensado ao mesmo tempo da execução de uma tarefa, por um impulso ou por uma atividade do fantasiar (como o sonhar acordado dos enamorados) que capturou o sujeito e o levou ao caminho da imaginação. Tanto esses pensamentos intrusivos quanto a fantasia podem ser reconhecidos e interpretados na medida em que o paciente sente confiança e abertura para, enfim, não sem ajuda do psicanalista, comunicá-los.
O que normalmente pensamos sobre essas manifestações? Tendemos a atribuí-las ao acaso, à coincidência, ao efeito de algum medicamento, ao cansaço ou à falta de concentração, encerrando rapidamente qualquer indagação sobre a origem delas com essas explicações. Freud questiona justamente a suficiência dessas respostas. Ele observa que lapsos também ocorrem em pessoas com boa saúde psíquica, sem déficits cognitivos e com plena capacidade de atenção.
Além disso, essas respostas também falham em explicar certos fenômenos correlatos: por que alguns atos falhos se repetem? Por que, mesmo quando direcionamos nossa atenção, às vezes não conseguimos lembrar de algo? Por que temos a sensação de que algo está “na ponta da língua”, mas alguma coisa nos impede de acessar essa lembrança?
Mas, talvez, a lacuna mais interessante dessas respostas fáceis seja: se o cansaço ou a distração fossem as únicas causas desses fenômenos, por que aquela mulher do exemplo que diz “chefe do matrimônio da empresa” erra justamente na palavra matrimônio, e não em outra qualquer, como empresa? Em outras palavras: existe algo a me impor uma forma específica de me equivocar?
É fato que o cansaço, a distração ou a agitação podem criar condições favoráveis para a ocorrência desses lapsos, mas não esgotam suas causas e a complexidade desses fenômenos. A aposta da psicanálise é que uma teoria do inconsciente e um processo de análise pessoal podem revelar essas especificidades. A literatura psicanalítica e os consultórios dos analistas estão cheios de exemplos que confirmam essa hipótese.
Dessa forma, esquecimentos, distrações, lapsos e falhas da atenção — que, na leitura médica, indicam sintomas do TDAH — podem, na perspectiva psicanalítica, ser compreendidos como formações do inconsciente passíveis de interpretação, permitindo ao sujeito, ao longo do processo analítico, decifrar paulatinamente o desejo que se manifesta de forma disfarçada nelas. Com isso, ele não apenas deixa de sofrer pela ignorância das determinações simbólicas que sustentam seus sintomas, mas também encontra modos de agir sobre elas.
Deve ficar claro para nós, nesse momento, que existem ao menos dois caminhos na direção do tratamento que aqui estamos problematizando: existe uma direção em que seguimos com aquilo que a demanda consciente é capaz de pedir, e buscamos, através de uma série de saberes, técnicas e estratégias terapêuticas (psicológicas ou medicamentosas), o desenvolvimento das habilidades necessárias para a conquista do exercício pleno da função pretendida — no caso hipotético relatado, o exercício da chefia do patrimônio —, sendo o lapso de fala aqui tomado como um mero erro de comunicação.
Existe ainda uma outra via, aquela em que não disputamos a direção do tratamento com o inconsciente, reconhecemos e interpretamos esses deslizes a partir de todas as associações mais insólitas que somos capazes de endereçar a um analista em quem realmente confiamos. Vemos, assim, surgir uma demanda mais incerta e complexa, que não era nossa intenção a priori resolver e, muitas vezes, pelo contrário, buscávamos escamotear.
E, ao invés de querer simplesmente me livrar pontualmente dos sintomas do TDAH, eu passe a me interessar em saber a transformação radical que eles me indicam. E aquela mulher, podendo percorrer o que quer dizer essa chefia na sua vida amorosa, consiga, enfim, poder inclusive ser uma ótima chefe para seus funcionários, ao ver, nos seus erros, e no dos outros, não os signos da de uma doença que a incapacita, mas a abertura para novas formas de ser até então desconhecidas, no trabalho e no amor.
- Guilherme Freitas Henderson é psicanalista, doutor e mestre em Psicologia Clínica e Cultura na Universidade de Brasília (UnB). Graduado em Psicologia pela mesma universidade, com período sanduíche na Universidad de la República – Udelar (Uruguay). Guilherme é supervisor de estágio em clínica psicanalítica (Cenfor-CEUB) e professor da pós-graduação Fundamentos da Psicanálise: Teoria e Clínica (Instituto ESPE). O psicanalista atende adolescentes e adultos e é membro da Associação Lacaniana de Brasília.
What's Your Reaction?






