Trump e aliados querem punir quem não gostam de ouvir (Por Inês Chaíça
Jimmy Kimmel estava na lista

A morte de Charlie Kirk entrincheirou posições e até os republicanos, defensores da liberdade de expressão, estão a favor da censura.
Até certo ponto, todos foram apanhados desprevenidos. As preparações para o programa Jimmy Kimmel Live! desta quarta-feira corriam como de costume. Uma das convidadas era a comediante Wanda Sykes, que até já estava maquilhada e pronta para entrar em cena. Só que nada mais correu como o previsto.
Quando se soube que o programa foi suspenso com efeitos imediatos, e sem data para regresso, por decisão da estação norte-americana ABC (propriedade da Disney), estava-se, na verdade, a olhar para o último evento de uma sequência que se desenrolou ao longo de algumas horas. A cronologia escreve-se assim: horas antes, o presidente da Comissão Federal de Comunicações (CFC), Brendan Carr, acusou o apresentador e humorista Jimmy Kimmel de ter “uma das mais doentias condutas possíveis”, e acenava com a possibilidade de o órgão regulador agir contra o programa de televisão.
O regulador por si não tem capacidade de cancelar uma cadeia pelo seu conteúdo. Mas tem o poder de atribuir licenças a estações de rádio e televisão, e Carr já admitiu reter a atribuição de várias em prol do interesse público — especificamente da sua definição de interesse público. É que, mesmo que numa entrevista, em 2019, tenha defendido que o órgão que lidera “não tem um mandato para policiar o discurso em nome do interesse público”, a sua posição mudou.
“Podemos fazer isto da maneira fácil ou da maneira difícil”, ameaçava Carr, na quarta feira, numa entrevista para um podcast.
Num segundo momento, duas empresas proprietárias de estações de televisões locais, a Nextar e a Sinclair, anunciaram que iriam substituir o programa na grelha das suas afiliadas. A Nextar, que, de acordo com o seu site, chega a 70% da população dos EUA, especificou, num comunicado, que “obsta aos comentários” recentes de Kimmel, “ofensivos e insensíveis num momento crítico do nosso discurso político nacional”.
Tudo porque, no monólogo de abertura do programa de segunda-feira, Kimmel referiu o assassinato do ativista ultraconservador Charlie Kirk e tudo o que aconteceu desde então: “Tivemos alguns novos pontos baixos durante o fim-de-semana com a trupe MAGA a tentar desesperadamente caracterizar este miúdo que assassinou o Charlie Kirk como qualquer outra coisa que não um deles, e a tentar retirar todo o aproveitamento político disso.”
“Estou muito contente por ver que os canais televisivos norte-americanos estão a defender os interesses da sua comunidade”, disse Carr à Fox News, já depois de se saber da pausa no programa de Jimmy Kimmel. “Agora não temos só este foie gras progressista a sair de Nova Iorque e Hollywood.”
Alvo preferencial ou dano colateral?
A decisão põe um ponto final a mais de 20 anos de Jimmy Kimmel Live!, um dos últimos bastiões da extensa tradição norte-americana dos late night shows, gravado em Los Angeles, mesmo ao pé do Passeio da Fama, que juntava entrevista, entretenimento e alguma sátira política.
Toda a gente passou por lá. Principalmente nomes do entretenimento, mas não só. Barack Obama esteve lá em 2015 e Joe Biden em 2022. Até Donald Trump — que Kimmel nunca se absteve de criticar durante as suas duas passagens pela Casa Branca — foi convidado, em 2007, quando ainda era só conhecido por ser um apresentador de reality shows.
Donald Trump já tinha o comediante na mira quando, para celebrar o fim do late night show do colega Stephen Colbert, a meio de Julho, escreveu no Truth Social que ouviu “dizer que o Jimmy Kimmel era o próximo”. “Tem ainda menos talento!”, desdenhou.
Agora, celebrando a “grande notícia para a América”, dá o nome de dois outros comediantes: “Jimmy [Fallon] e o Seth [Meyers], dois completos falhados.”
Esta decisão não acontece no vácuo, mas num contexto marcado, nos últimos dias, pelo despedimento de jornalistas e analistas políticos pelos seus comentários sobre a morte de Kirk. Em que a procuradora-geral Pam Bondi defende que os comentários de desvalorização da morte do ativista deviam ser considerados “discurso de ódio”. Em que Trump, questionado na terça-feira sobre essa ideia, responde ao jornalista que “talvez devamos perseguir-te a ti, que estás sempre a dizer coisas más sobre mim”.
Acontece num momento em que o vice-presidente J.D. Vance, numa emissão póstuma do programa de Charlie Kirk, defende que, quem “celebra o assassinato de Charlie”, deve ser “chamado à atenção e, raios, digam aos seus empregadores”. Em que o Departamento de Estado começou a tentar identificar cidadãos estrangeiros que “celebrem ou racionalizem” a morte de Kirk, colocando-os numa lista que os impede de receber vistos de viagem norte-americanos.
Quem tem medo da Primeira Emenda?
É um terreno espinhoso para os conservadores norte-americanos, que defendiam, até há bem pouco tempo, a liberdade de expressão a qualquer custo que lhes concedia a Primeira Emenda da Constituição com unhas e dentes.
Exemplo disso foi um dos muitos decretos que Donald Trump assinou no primeiro dia do seu segundo mandato — um que servia para “restaurar a liberdade de expressão e terminar com a censura federal” e que “consagra o direito da população norte-americana de falar livremente na praça pública, sem interferência do Governo”.
“Ao longo dos últimos quatro anos, a anterior Administração violou os direitos de liberdade de expressão ao censurar os americanos em plataformas online, muitas vezes exercendo pressão coercitiva sobre terceiros, como empresas de redes sociais para moderar ou suprimir de alguma forma a opinião que o Governo federal não aprovava”, lê-se no texto do decreto.
Muito mudou desde esse dia 20 de Janeiro. Agora, Trump fala numa “esquerda radical que causa uma violência tremenda” (e que serviu de justificação para declarar o movimento antifascista Antifa como organização terrorista), que é preciso vigiar e punir.
Ouvidos pelo Washington Post, vários constitucionalistas falam numa ação inédita e sem precedentes. O Presidente norte-americano “quer muito usar estas ferramentas do Governo para tentar silenciar os discursos de que não gosta”, disse Erwin Chemerinsky, reitor da Faculdade de Direito de Berkeley, na Universidade das Califórnia. “Nunca vimos um Presidente a fazer nada disto.”
A suspensão do programa de Kimmel causou alvoroço entre os democratas, rápidos a sinalizar a “censura em tempo real”, como escreveu o governador da Califórnia, Gavin Newsom. Juntou-se às denúncias de “cobardia” e “abuso de poder” vindas da bancada democrata, que, por sua vez, ecoam nas palavras dos companheiros de profissão de Jimmy Kimmel. O sindicato de atores SAG refere o “perigo à liberdade de expressão”, e os guionistas, através do Writers Guild of America, referem que “silenciar as palavras empobrece o mundo”.
Wanda Sykes, no vídeo que acabaria por gravar já maquilhada e pronta a entrar em estúdio, protestou contra a decisão — e contra Trump: “Não acabou nem com a guerra na Ucrânia nem com a questão de Gaza, mas acabou com a liberdade de expressão no seu primeiro ano.”
(Transcrito do PÚBLICO)
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