“Volta para a tua terra” não é sobre brasileiros (Por Maria Pinheiro)

Ainda que também sejamos atingidos pela xenofobia, não vamos conseguir fazer alianças reais

Oct 16, 2025 - 11:30
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“Volta para a tua terra” não é sobre brasileiros (Por Maria Pinheiro)

Quando emigrei para Lisboa, em 2019, tornei-me Outra pela primeira vez. O processo de tornar-se Outro é, por si só, dramático. Já havia começado meu letramento racial no Brasil há alguns anos, com alguma consciência mais formal por volta de 2014, mas, em Portugal, a branquitude se movimentou dentro e fora de mim com dinâmicas que me ultrapassavam em termos teóricopráticos.

O privilégio branco de poder escolher tornar-se o Outro traz também a responsabilidade que implica em mecanismos e dinâmicas que, parafraseando Audre Lorde, lucram com opressões de outras partes de nossas identidades — mulher, latina, etc.

Como todo processo, há, na consciência racial somada à migração, movimentos, descobertas, retrocessos, desvios — é contraditório, humano e vivo. Mas algo me parece deslocado quando, no coletivo da nossa bolha, a branquitude intelectual brasileira de esquerda que emigrou nos últimos anos parece ter um prazer curioso em se colocar como alvo principal da violência xenófoba

Não podemos rir dos bolsonaristas em Portugal que parecem gostar do país justamente pelos avanços de bem-estar social que são frutos de políticas de esquerda — e/ou parecem não perceber que também são imigrantes. Não percebermos nós a incongruência quando, por exemplo, dizemos lutar pelos direitos reparativos da memória colonial, mas não olhamos a nossa própria ascendência também colonial.

Há que se “devolver o ouro”. Mas não a nós.

Somos todos brasileiros e carregamos as violências da construção (e preservação) nacional dentro de nossa identidade, passado e presente individuais e coletivos. Entretanto, como bem sabemos pela experiência cotidiana no nosso país de origem, o racismo não tem ponderações no momento de operar. O fenótipo é a sentença.

Eu, enquanto brasileira branca de cara, de classe média independente dos 10 euros na conta, se estiver quieta pelas ruas de Lisboa, serei bem tratada até abrir a boca. Uma pessoa brasileira dos muitos outros brasis que compõem o nosso país, provavelmente, terá outro tratamento desde o começo.

Isso, para restringir a discussão aos brasis que vivem aqui, sem entrar em outras migrações e/ou diásporas. E deixamos para outro texto as lutas seculares dos movimentos negros portugueses.

Nós não deixamos de ser brancos por sermos latinos na Europa. Nós não deixamos de reproduzir a estrutura por termos nos deslocado dela.

Não dá para falar sobre xenofobia sem falar de racismo, capitalismo e suas dinâmicas. Obviamente, dentro dos nossos lugares de fala — e, “se branco só escuta branco” —, já passou da hora de nós, aqueles que se interessam pelo assunto — e não só —, termos essa conversa de forma honesta e não condescendente.

 

(Transcrito do PÚBLICO-Brasil)

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