Malandros e trambiqueiros (por  Gustavo Krause)

São personagens centrais da sociedade brasileira. Não são sinônimos, apesar das semelhanças

Dezembro 7, 2025 - 11:30
 0  0
Malandros e trambiqueiros (por  Gustavo Krause)

São personagens centrais da sociedade brasileira. Não são sinônimos, apesar das semelhanças. O malandro tem uma conotação positiva na nossa paisagem cultural. Adota um estilo de vida peculiar. É temente a Deus e ao trabalho. Desafia as convenções sociais de modo a levar vantagem em tudo que se mete. Para lograr uma existência livre, leve e boa, desenvolve habilidades da esperteza. Da astúcia. Aprimora a arte enganar e encontra sempre que se deixa enganar: a legião dos otários.

No entanto, passa raspando pelo Código Penal de modo a não cair na malha do artigo 171 (estelionato e fraudes diversas). Não é bandido. Pelo contrário. O malandro e o ambiente da malandragem são fontes de inspiração do cancioneiro, da literatura e da pesquisa sociológica.

O renomado antropólogo, escritor e jornalista, Roberto DaMatta (1936), na obra magistral Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro – Rio de Janeiro: Rocco Digital, 2012, define o malandro como “um ser deslocado das regras formais, fatalmente excluído do mercado de trabalho. Aliás definido por nós como totalmente avesso ao trabalho e individualizado pelo modo de andar, falar e vestir-se”.

Por sua vez, a romantização do malandro é cantada na poesia musical do samba-choro de autoria de Assis Valente (1911-1958) Camisa Listrada, 1937, imortalizada na voz da “pequena notável”, Carmen Miranda (1909-1955). Jorge Aragão compôs a canção Malandro (1983) interpretada pela saudosa Elza Soares (1930-1922). Cabe destacar a consagrada peça do teatro musical de Chico Buarque de Holanda, A Ópera do Malandro, encenada em 1979 e adaptada ao cinema em 1985.

Na literatura e na criação de personagens televisivos, cinematográficos, o malandro é tema recorrente e que molda um tipo original, um modelo arquetípico, desde a figura criada nas Memórias de um Sargento de Milícias, explorada pelas diversas escolas literárias, a exemplo do legado modernista em Macunaíma – O herói sem nenhum caráter (Mário de Andrade, 1893-1945)) e que está na boa da companhia do espertíssimo e irreverente Vadinho em Dona Flor e seus dois maridos (Jorge Amado,1912-2001).

Não custa mencionar a figura singular do vivaldino Castelo, o protagonista do delicioso conto de Lima Barreto (1881-1922) que engabelou o Barão de Jacuecanga e os burocratas da época como O Homem que Sabia Javanês. E para além de nossas fronteiras, cabe destacar a figura octogenária e icônica de Zé Carioca, criado nos estúdios Walt Disney (o Joe) como um versátil e suave representante do estilo do carioca da época, alegre, criativo, bem-humorado, manero, tempos longínquos em que a diplomacia americana praticava e difundia o “soft power”. E na epifania de Herivelto Martins, hoje desnaturada, morar no morro era viver pertinho do céu.

A verdade é que os tempos mudaram radicalmente. Na era competitiva e performática, não há lugar para o malandro tradicional. Sobra a tentação da ganância e, com ela, afunda o ideal ingênuo da vida boa e simples. O crime é o vizinho em todos os recantos do espaço social. A malandragem dá lugar à bandidagem. A astúcia e a esperteza abrem passagem para a delinquência; a fraude é o método; estelionato, mais do que um tipo penal, é o objetivo permanente para obter a vantagem ilícita; e  organizar a ação criminosa, um investimento estratégico.

Entra em cena o trambiqueiro. O falsário, o trapaceiro, o golpista sob um invólucro mais “elegante”: o marginal pleno. No caso brasileiro, este tipo de delinquente utiliza padrões sofisticados na estruturação dos negócios à margem da lei. Elabora um plano e monta a estratégia para o assalto ao bem público ou privado. A estratégia se aproveita do persistente patrimonialismo do estado brasileiro onde viceja a promiscuidade entre o interesse público e o privado. É o “locus” adequado.

Com razoável esforço de observação, é possível identificar o perigo bem como acionar os mecanismos de proteção às vítimas potenciais. Senão vejamos.

Todo trambiqueiro desenvolve o agudo senso oportunista, sabe onde está o “tesouro” e, certeiro, versátil, conhece, também, as formas mais eficientes de abordagem. Começa com um discurso pró-mercado. Mentira. Foge da concorrência e da competição como o diabo da cruz. Em compensação, adora todo tipo de subsídios, monopólios e tudo mais que esteja sob o manto corrompido do “capitalismo de laços e de compadrio”.

Prevenido, o marginal pleno/trambiqueiro se protege com uma sólida arquitetura jurídica montado por “competentes” consultores e advogados pagos com honorários estratosféricos. Prefere, é claro, os que demonstrem comprovada influência junto às autoridades. Cuida com zelo especial de instalar “lavanderias”; plantar vastos “laranjais”; buscar os paraísos fiscais de modo a apagar responsabilidades e sonhar com o crime perfeito.

Todo ele se mostra atual. Antenado. Digitalizado. Convincente. Cultiva um verniz de modernidade no estilo. É neo. Neo-rico. Neo-enófilo. Neo-Gourmet. Neo-brega com métricas chiques no falar, soleniza lugares-comuns; no vestir, roupas de marca, caras, com certo “despojamento corporativo”; no divertir (aí mora o perigo), luxos, excentricidades e uma casual cafungada no pó.

Dos escândalos amplificados com o ditongo “ão”, ao careca do INSS”, ao “trambanqueiro” do Master e ao guloso Magro da Refit, todos ostentam para valer. Ao fim e ao cabo, espetaram algumas dezenas de bilhões de reais nos costados dos aposentados do INSS e no bolso do contribuinte. As promessas do sistema de compliance, os mecanismos de fiscalização e controle passaram batidos diante de evidentes sinais de enriquecimento ilícito.

Ninguém viu. O impressionante livro de Saramago O Ensaio sobre a Cegueira oferece uma explicação, ainda que ficcional: epidemia geral que afetou a visão de uma comunidade. No nosso caso, tudo indica que ocorreu, e pode continuar ocorrendo, epidemias, porém, seletivas o que garante aos delinquentes o troféu da impunidade.

PS. Saúde e Paz aos leitores e leitoras. Se Deus quiser, voltarei no final de janeiro.

What's Your Reaction?

like

dislike

love

funny

angry

sad

wow

tibauemacao. Eu sou a senhora Rosa Alves este e o nosso Web Portal Noticias Atualizadas Diariamente