Primeira mulher assume presidência da Academia Brasileira de Música
A compositora e pesquisadora Ilza Nogueira será a primeira mulher na história a comandar a instituição fundada por Villa-Lobos em 1945
A Academia Brasileira de Música (ABM), fundada por Heitor Villa-Lobos em 1945, terá pela primeira vez, em 80 anos de existência, uma presidente mulher. A compositora, pesquisadora e acadêmica Ilza Nogueira foi eleita para comandar a instituição e tomará posse em março de 2026.
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Natural de Salvador, Ilza construiu uma trajetória acadêmica e artística marcada pela profundidade intelectual, pelo diálogo entre linguagens e pela dedicação à música contemporânea brasileira. Com formação no Brasil, na Alemanha e nos Estados Unidos, ela é doutora em composição pela Universidade de Nova York, em Buffalo, onde estudou com nomes como Lejaren Hiller e Morton Feldman, e realizou pós-doutorado em Teoria da Música na Universidade de Yale.
Professora aposentada da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), ela chegou a João Pessoa em 1978 para integrar o Departamento de Música da instituição, onde lecionou por 22 anos.
Sua produção se destaca pela relação entre música e literatura — fruto de sua dupla graduação em Música e Letras na Universidade Federal da Bahia (UFBA) — e pela atuação como musicóloga, analista e pesquisadora do repertório brasileiro contemporâneo, especialmente do Grupo de Compositores da Bahia.
Autora do livro Ernst Widmer, Perfil Estilístico (1997), Ilza publicou catálogos de obras de compositores como Ernst Widmer, Lindembergue Cardoso e Jamary Oliveira, além de coordenar, por duas décadas, o projeto Marcos Históricos da Composição Contemporânea, na UFBA. No CNPq, alcançou a categoria de Pesquisadora Sênior, consolidando sua relevância para a área.
Ilza Nogueira afirma que dentre todas as artes, a literatura pode ser considera a mais íntima da música
A nova diretoria da ABM será composta ainda por André Cardoso (vice-presidente), Tim Rescala, Flávia Toni, João Guilherme Ripper e Maria Alice Volpe.
Minha eleição traduz a compreensão de que somos uma organização nacionalIlza Nogueira
Para Ilza, assumir a presidência tem um significado que ultrapassa a representatividade de gênero. Pela primeira vez, a direção da Academia também estará fora do Rio de Janeiro, sede da instituição desde sua fundação.
“Minha eleição foi significativa não só por conduzirem, pela primeira vez, uma mulher à presidência, como também por levarem a direção para fora do Rio de Janeiro. Isso traduz a compreensão de que somos uma organização nacional e que devemos valorizar a representatividade regional.”
Ela destaca ainda que a presença feminina na ABM permanece desigual, ou seja, somente 10 das 40 cadeiras são ocupadas por mulheres:
“Em toda a história da instituição, a presença feminina representa apenas 15%. Para mim, essa conquista tem um valor especial: o da confiança dos meus pares na minha capacidade de cuidar dos interesses da Academia.”
Entre música e literatura: uma gestão guiada por intersecções
A compositora pretende levar sua visão interdisciplinar para dentro da instituição. A relação entre música e literatura, que atravessa sua obra, nasce de sua formação paralela nas duas áreas. Segundo Ilza, as linguagens dialogam por compartilharem estruturas discursivas, ainda que operem com significados distintos.
Navegar entre a música e a literatura é um deleite que praticamente todos os compositores experimentamIlza Nogueira
Ela adianta que deseja aproximar a ABM da Academia Brasileira de Letras (ABL):
“Tenho intenção de promover uma aproximação produtiva entre a ABM e a ABL. A interdisciplinaridade entre a linguística, a teoria literária e a teoria da música, tendo na teoria da narratividade seu maior ponto de confluência, é uma motivação que certamente excitará debates e publicações que poderemos conceber e ativar em conjunto para a ampla comunidade acadêmica.”
Ilza Nogueira
Descolonização, futuro institucional e expansão internacional
Ilza assume a ABM em um momento de transformações culturais profundas e de desafios para as instituições artísticas no país. Ela destaca a urgência de defender identidades musicais em meio às políticas globais de descolonização e mobilidade cultural.
“Vivemos uma grande transfiguração das culturas do mundo. Devemos compreendê-la como espaço de negociações, mas preservando singularidades.”
A presidente eleita também enfatiza a necessidade de preparar a Academia para um marco delicado: a perda, em 2030, dos direitos autorais sobre a obra de Villa-Lobos, hoje a principal fonte de recursos da instituição.
“Precisamos garantir a vitalidade cultural da ABM. Isso requer criatividade administrativa, políticas cooperativas e alianças fortalecedoras.”
Sua proposta inclui expandir parcerias internacionais. Em novembro, a Academia admitiu membros correspondentes na França, Finlândia e Portugal, o passo inicial para cooperações com universidades como a Nova de Lisboa, a de Versailles e a de Helsinque.
Outro foco será intensificar o diálogo com músicos de todo o país, ampliando iniciativas como os Encontros ABM, série mensal de debates transmitidos ao vivo pelo YouTube.
De acordo com Ilza, pode-se dizer que a música é como um idioma
Vivência internacional como eixo formador
Sua formação na Alemanha e nos Estados Unidos foi definidora:
“As vivências internacionais me deram régua e compasso.”
Na Alemanha, a convivência com a vanguarda europeia dos anos 1970 moldou sua visão estética. “Estar em Colônia, um dos ninhos da nova música internacional, significou amplitude estética e um referencial perfeccionista para o fazer musical.”
Nos EUA, o contato com bibliotecas e centros de pesquisa despertou sua vocação para a musicologia. “Foi ali que a fagulha da pesquisa fez desabrochar em mim a pesquisadora. E isso transformou toda a minha trajetória.”
School of Music, Adams Center for Musical Arts, Yale University
O legado do Grupo de Compositores da Bahia
Com forte ligação com o Grupo de Compositores da Bahia (GCB), Ilza ressalta que sua pesquisa sobre o repertório do grupo contribuiu para resgatar, editar e preservar parte fundamental da música contemporânea brasileira.
“Foi natural resgatar o passado e constituir o repertório do GCB como meu objeto de estudos. A expressividade de compositores baianos na ABM é notável, é a nossa memória cuidadosamente preservada.”
Um marco histórico
Ilza Nogueira ingressou na ABM em 2003, ocupando a Cadeira 27. Agora, 23 anos depois, será a primeira mulher a assumir a presidência da instituição fundada por Villa-Lobos.
A eleição representa não apenas um avanço simbólico, como a chegada de uma gestão que pretende ampliar diálogos, abrir fronteiras e fortalecer a identidade da música brasileira — dentro e fora do país.
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