Adultização de meninas e violência contra mulheres: um ciclo perverso que exige ruptura urgente
Enfrentar esse ciclo exige ação coordenada, firme e contínua. O reconhecimento da criança como sujeito de direitos é fundamental

A violência contra mulheres é um fenômeno estrutural e persistente, que atravessa gerações e se manifesta de forma precoce, muitas vezes ainda na infância.
Em meio ao agosto lilás, mês de conscientização sobre a violência contra as mulheres, ganha espaço nos meios de comunicação o tema da adultização de meninas, que é uma das portas de entrada mais insidiosas para esse ciclo de violência.
Dentre as diversas formas de exposição de crianças a comportamentos e conteúdos próprios da vida adulta, merece especial atenção a erotização precoce de meninas, marcada pela imposição externa de sexualidade, pela valorização excessiva da aparência e pela indução a comportamentos sexualizados.
Trata-se de uma prática cruel, que compromete o desenvolvimento emocional e psicológico da criança, e que a lança em uma lógica de consumo e objetificação, que é aversa à infância e que não deveria ser tolerada em nenhuma fase de vida.
Essas práticas não apenas violam a dignidade da criança de forma alarmante, como também reforçam estereótipos de gênero e desigualdades sociais profundamente enraizadas.
Em casos mais graves, podem desencadear transtornos como ansiedade, depressão e estresse pós-traumático, especialmente quando há exploração sexual ou vazamento de imagens — feridas que muitas vezes acompanham a vítima por toda a vida.
Sexualização precoce
A erotização infantil não é um fenômeno isolado. Ela está inserida em uma engrenagem social que coisifica o corpo feminino e naturaliza a violência de gênero.
Meninos também são vítimas; mas as meninas, em maior proporção e profundidade, são submetidas a uma sexualização precoce que as torna vulneráveis a abusos e violências.
Essa erotização integra a gramática sexual que regula as relações entre homens e mulheres, perpetuando a ideia de que o corpo da mulher — mesmo quando ainda é o corpo de uma menina — é objeto de desejo, posse e controle.
Em razão do racismo estrutural que organiza a sociedade brasileira, meninas negras são especialmente atingidas por estes cruéis estereótipos e violências.
A violência de gênero é um fenômeno que não atinge somente mulheres em sua vida conjugal, mas que também tem meninas como alvo. A infância que deveria constituir espaço de extrema proteção é marcada por abusos simbólicos e concretos.
A pesquisa Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, revela que 21,4 milhões de brasileiras — 37,4% do total de mulheres — sofreram algum tipo de violência nos últimos 12 meses.
Destas, 91,8% sofreram a violência na presença de terceiros, sendo que em 27% destes, os próprios filhos presenciaram o fato. Esse elevando percentual levanta a questão sobre a percepção da família como um ambiente inseguro e caótico.
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Problema que se perpetua na vida adulta
As evidências científicas sugerem que crianças que testemunham violência doméstica têm maior probabilidade de serem afetadas pela violência na vida adulta, seja como vítimas ou como agressoras.
A violência doméstica pode se perpetuar entre gerações. Esses números não são apenas estatísticas — são gritos por socorro.
Em 10 anos de atuação como magistrada em situações de violência doméstica, uma das questões que mais me angustia é justamente a falta de percepção do risco pela vítima, que entende a violência como algo “normal”, o que está claramente ligado a experiências pretéritas desta mulher, que quase sempre vivenciou a violência desde criança.
Da mesma forma, para o agressor, que aprendeu, desde muito pequeno, a se comportar de forma violenta.
Enfrentar esse ciclo exige ação coordenada, firme e contínua entre família, sociedade e Estado. O reconhecimento da criança como sujeito de direitos é fundamental.
Isso inclui a criação de ambientes seguros, afetivos e respeitosos, tanto no espaço físico quanto no digital, e o fortalecimento de vínculos, que andam tão fragilizados.
A adultização de meninas é uma forma de violência invisível, mas profundamente enraizada e devastadora. Enfrentar essa violência é um compromisso ético, institucional e humano.
Implica reconhecer que proteger a infância é proteger o futuro das mulheres — e que cada um de nós, como cidadã(o), profissional ou agente público, tem uma responsabilidade intransferível na construção de uma sociedade mais igualitária, justa e livre de violências.
- Fabriziane Zapata, juíza coordenadora da Coordenadoria da Mulher em Situação de Violência Doméstica do Tribunal de Justiça do Distrito Federal (CMVD/TJDFT) e titular do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher do Riacho Fundo
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