DF realizou 85 abortos legais em meninas estupradas de 10 a 18 anos
Interrupção de gravidez é prevista em lei em casos específicos e tem as regras consolidadas em resolução do Conanda, sustada pela Câmara
Em todo o país, meninas e mulheres vítimas de estupro têm direito a realização de um aborto legal gratuito na rede pública de saúde. Essa garantia está prevista no Código Penal e na Lei do Minuto Seguinte (Lei nº 12.845/2013).
No Distrito Federal, o Hospital Materno Infantil de Brasília (Hmib) é a unidade de referência para esse tipo de atendimento. Só no primeiro semestre deste ano, 199 mulheres foram atendidas e realizaram a interrupção da gravidez de forma legal em ambiente de saúde adequado. Destas, 13 eram crianças ou adolescentes entre 10 e 18 anos. Ao longo do ano passado, 41 meninas realizaram o aborto legal no rede pública do DF e em 2023 foram 31 casos.
No total, 85 meninas realizaram aborto legal no Hmib ao longo dos últimos três anos.
No DF, os estupros registrados pela Polícia Civil somam 833, sendo 561 casos de estupro de vulnerável, quando a vítima tem menos de 14 anos ou não tem condições de consentir ou de se defender.
O Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) oferece acolhimento multiprofissional e garante assistência médica a meninas e mulheres que querem realizar o aborto quando há resguardo legal, como em casos de estupro.
Encaminhamentos
A Secretaria de Saúde do DF explicou, em nota, que nos casos de gestação decorrente de violência, o PIGL realiza o aborto respeitando Norma Técnica do Ministério da Saúde e, além de oferecer acolhimento humanizado, encaminha as mulheres para as unidades básicas de saúde, Centros de Especialidades para Atenção às Pessoas em Situação de Violência Sexual, Familiar e Doméstica (Cepav), Serviço Social, Centros de Atenção Psicossocial (Caps) ou Conselho Tutelar, quando é o caso.
No Brasil, aproximadamente 2,4 mil abortos foram realizados no sistema de saúde segundo o Ministério da Saúde. A pasta explica que a prática de aborto está regulamentada pelos artigos 124 a 128 do Código Penal e não é necessário apresentar boletim de ocorrência. “Basta a palavra da mulher ou da pessoa gestante, por meio de declaração de próprio punho ou termo de relato circunstanciado, para que a equipe de saúde dê continuidade ao atendimento”, afirmou o ministérios em nota.
Karen Langkammer, diretora da Divisão Integrada de Atendimento à Mulher da Polícia Civil do DF, entende que a saúde da vítima é prioridade total no fluxo de atendimento e não impede a apuração do crime envolvido.
“O acesso à saúde não atrapalha a investigação. O que dificulta a investigação não é a porta de entrada ser o hospital; o que dificulta é a vítima nunca chegar nem ao hospital, nem à polícia”, pontuou.
A delegada defende um método onde a Saúde acolhe, protege e orienta; a polícia investiga, responsabiliza e nenhum desses passos pode se transformar em barreira para a vítima.
“Hoje, existe a Lei 13.931/2019, que alterou a Lei 10.778/2003 e obriga os serviços de saúde – públicos e privados – a registrarem no prontuário e comunicarem à autoridade policial, em até 24 horas, os casos com indícios de violência contra a mulher, justamente para que sejam adotadas providências cabíveis e produzidos dados estatísticos”, esclareceu.
Na letra da lei, esse modelo de atendimento garante que as vítimas tenham acesso ao procedimento de interrupção de gravidez com segurança e legitimidade, sem que a investigação impeça ou atrapalhe o acolhimento médico e psicossocial.
No entanto, segundo Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, que integra o Conanda, a dificuldade para fazer um procedimento de aborto legal é comum e se tornou ‘regra em todo país’, conforme explicou em entrevista ao Metrópoles.
“Apesar de já estar na lei há 80 anos, a gente tem uma média de 2.000 abortos legais realizados anualmente no Brasil. É muito baixo, se você considerar que só os casos de estupro já são quase 100.000. A gente tem, todos os dias, 30 meninas de até 14 anos de idade parindo. E a gente tem por ano menos de 200 abortos legais que são realizados nessas meninas. Então, existe uma falta de acesso que não foi superada”, comentou a ativista.
Apoio jurídico e dificuldades
Nos casos em que a vítima enfrenta dificuldade para realização do aborto legal, a Defensoria Pública dispõe de atendimento específico para auxiliar e garantir o que preconiza a lei. No Distrito Federal, dois casos foram assistidos pela Defensoria Pública por meio do Núcleo da Infância e Juventude (NAJINFJUV) nos últimos dois anos.
“Esses pedidos chegam à Defensoria quando: há negativa do serviço de saúde, por exemplo, em razão de idade gestacional superior a 22 semanas; há ausência ou impossibilidade de representação familiar, quando os pais ou responsáveis não comparecem, estão em conflito de interesses ou não conseguem garantir o acesso ao procedimento. Essas situações são pontuais, mas a Defensoria intervém para garantir que a legislação seja cumprida e que as vítimas recebam atendimento humanizado, seguro e dentro dos parâmetros legais”, explicou a Defensoria Pública do DF em nota.
No ano passado, apuração exclusiva do Metrópoles revelou que mais de 190 pedidos de aborto foram negados pela Secretaria de Saúde em quatro anos.
As regras para o atendimento rápido e humanizado a meninas vítimas de estupro foram consolidadas na Resolução nº 258, de 2024, do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda). O texto confirma, entre outros pontos, que a realização do aborto legal não depende de comunicação a nenhum órgão ou autorização judicial. A resolução garante ainda que não há limite de tempo gestacional para realização do aborto e isso não pode ser utilizado como argumento para impedir o procedimento.
No entanto, um Projeto de Decreto Legislativo (PDL) aprovado na Câmara dos Deputados na semana passada preocupa os órgãos de proteção às mulheres e gerou uma série de repercussões no governo, no Congresso e nas redes sociais. A proposta susta a resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) que estabelece as diretrizes para o atendimento de meninas vítimas de estupro na rede de saúde.
Para o Conanda, a aprovação do PDL é um retrocesso pois “cria um vácuo que dificulta o acesso dessas vítimas ao atendimento e representa um retrocesso em sua proteção”.
Em nota conjunta, o governo federal, por meio dos ministérios das Mulheres, e o dos Direitos Humanos e Cidadania, afirma que está ‘extremamente preocupado’ e atuando para esclarecer aos parlamentares o posicionamento técnico sobre o assunto.
“O corpo de uma criança não suporta uma gravidez, e nenhuma gestação em crianças, situação de extrema vulnerabilidade deveria sequer ocorrer. Entendemos que o Conanda atuou dentro dos limites de sua competência legal e democrática, com participação da sociedade civil. Por isso, consideramos que o PDL não tem fundamento constitucional para seguir tramitando e representa um inconformismo de setores que se opõem à proteção integral de meninas vítimas de violência”, afirma a nota publicada na última sexta-feira (7/11).
Laura Molinari, coordenadora da campanha Nem Presa Nem Morta, integra o Conanda e defende que o PDL é inconstitucional e, se necessário, será judicializado.
“Tem uma petição aberta da campanha ‘Criança Não É Mãe’ e a gente tá tentando conversar com alguns senadores, para que ou peguem a relatoria ou não coloquem esse projeto em pauta, porque a sociedade já está dando uma resposta sobre o que considera correto”, pontuou.
Após aprovação na Câmara, o PDL foi despachado para o Senado, onde ainda não apresentou movimentações.
Conforme apuração colunista de Igor Gadelha, o presidente da Casa Alta, Davi Alcolumbre não tem entusiasmo em pautar a proposta para discussão no plenário e o debate ainda demorar.
Serviço:
Acesso ao Programa de Interrupção Gestacional Prevista em Lei (PIGL) no DF
A cidadã pode procurar o HMIB espontaneamente;
ou agendar atendimento pelo Whatsapp 2017-1624, pelo telefone 3449-7667 ou pelo e mail: pigl.hmib@saude.df.gov.br.
Horário de funcionamento: segunda a sexta-feira, das 7h às 12h e das 13h às 18h.
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