Os maiores promotores de Justiça
No que toca o combate à corrupção e à criminalidade, nos sentimos muitas vezes diante da ilusão de justiça

O título os levaria a acreditar que as próximas linhas serão de histórias de honrados e corajosos promotores de Justiça, que entregaram, com alto sacrifício pessoal, suas vidas para defender a ordem jurídica, o regime democrático e os interesses sociais e individuais indisponíveis.
Não faltam nomes de colegas de tenacidade incomparável que se guardaram íntegros na missão de defender a sociedade das maldades humanas. Maldades muitas vezes praticadas por poderosos que, por acreditarem estar acima da lei, estavam certos de que os parariam.
Estas histórias sacrificaram o descanso, as férias, a casa, tempo com os amigos e com a família, a cidade, o país e às vezes o próprio cargo e até a vida, mas não sucumbiram às perseguições e ameaças e perseveraram defendendo a vida, a liberdade de ir e vir, de se expressar, a integridade física das pessoas, a segurança, a igualdade, a dignidade, a justiça, a educação, a saúde, etc…
Hoje, porém, quero me ater a outros “promotores de Justiça”. Aqueles que não ocupam o título oficial, não fizeram o mesmo concurso público, mas que, por serem igualmente valentes e idealistas, escolheram plantar no único terreno em que hoje a semeadura pode significar transformação, esperança, oportunidades e perspectivas novas de liberdade, justiça, paz, prosperidade, dignidade e bem estar para nossa nação.
Este lugar é o da Educação, que chamo de Sistema de Gestão das Excelências Humanas. Sejam gestores, professores, técnicos, voluntários ou servidores de apoio — todos os que atuam na educação carregam em seus potenciais, inteligências, criatividade e competências, uma sincera oportunidade para edificar uma justiça real e efetiva.
Escolheram a mais importante profissão em qualquer sociedade: mestres que formam, lapidam, ensinam e cuidam dos diversos processos de aprendizagem de que tanto anseiam nossas crianças, adolescentes, jovens e adultos e de que tanto depende o novo futuro da nossa nação. É que se não houver com excelência e precisão a aplicação da vacina da integridade nesta geração, não haverá tamanho de Sistema de Justiça capaz de administrar todos os desvios humanos.
Urgência
Nunca foi tão urgente que o Estado, unido a todos os segmentos da sociedade civil, possa priorizar o verdadeiro “remédio efetivo” para a fruição de direitos e harmonia social: formar pessoas íntegras, retas, valorosas, virtuosas, honestas, responsáveis, respeitosas, persistentes, resilientes, doadoras, servis, generosas, empáticas, ensináveis e gratas, que primam pela excelência e são colaborativas, cooperativas e corajosas. É que a era digital, embora tenha acelerado incontáveis coisas excelentes, acelerou, também as maldades humanas.
Quando tudo precisava ser pesquisado e construído em bibliotecas, enciclopédias, teses escritas, projetos de papel, desenhos à mão e reuniões presenciais, a velocidade entre a cogitação das coisas e a sua implementação era outra — era lenta.
Este interregno permitia questionamentos, reflexões, amadurecimento das ideias, bem como submetê-las ao crivo da utilidade, necessidade, conveniência, bondade e serviço para fraternidade humana.
Hoje, os mecanismos de comunicação entre as pessoas, a aceleração de leituras, o acesso a uma infinidade de conhecimentos compilados e informações disponíveis, a partir dos prompts feitos às inteligências artificiais, reduzem drasticamente o tempo entre a ideia e a prática, impedindo até eventual desistência ou recuo necessário e, quando se vê pessoas já foram gravemente feridas ou prejudicadas. É o exemplo dos “desafios” que já levaram tantos jovens ao suicídio e dos aliciamentos que conduziram outros ao crime.
Urge, portanto, com a mesma velocidade e excelência, cuidarmos do que cogitam os corações que usarão cada vez mais os conteúdos acelerados. Será para produzir progresso, prosperidade, bem estar, proteger a vida, a liberdade e a paz? Ou para gerar destruição e sofrimento?
As ciências biológicas, químicas, médicas e tecnológicas tanto podem dar vida a quem antes tinha doenças incuráveis, podem ampliar o acesso à água, saneamento, alimentação, quanto podem produzir morte com drogas, armas químicas, guerras biológicas, etc…
A matemática, raciocínio lógico, engenharias, física, economia e administração podem resolver e prevenir desabamentos, inundações, construir fundações mais baratas, melhorar as comunicações, os transportes, as energias limpas, políticas públicas mais eficientes, erradicar a pobreza, atrair investimentos, mas podem também criar inúmeros sistemas de fraude, aliciamento e manipulação.
Direitos fundamentais
No meio a esta aceleração de extremos, quem poderá garantir os direitos humanos fundamentais de uma forma mais efetiva, qual seja, antes de serem violados de forma irreversível? Os educadores em todos lugares: na educação básica, superior, coorporativa, institucional e, claro, familiar.
O sistema de educação é um sistema de elevado valor, o lugar onde a excelência humana e a justiça podem se materializar. É nele em que guardamos a esperança de que os direitos humanos fundamentais reconhecidos pela Declaração Universal, por nossa Carta Magna e nossas leis, sejam verdadeiramente promovidos, enraizados e sedimentados na nossa sociedade a fim de que possam ser usufruídos pelo nosso povo e não, meramente reconhecidos por documentos, e depois violentados e vilipendiados na vida real.
É que, para nós, os “promotores de Justiça do Sistema Judicial”, buscar defender direitos, que tem o status de fundamentais, depois de ultrajados, aviltados e transformados em inquéritos nas Delegacias e em processos no Sistema de Justiça não é das mais profícuas experiências.
A dor e a frustração de nos depararmos cotidianamente com vidas ceifadas, órfãos nascendo, crianças violentadas, patrimônios saqueados, liberdades violadas, famílias desfeitas, sonhos enterrados, deficiências impostas e misérias humanas de toda sorte, em escala exponencial e sem perspectiva de mudança, são, por vezes, um decreto de impossibilidades.
O art. 8º da Declaração Universal de Direitos Humanos, preconiza que direito à Justiça deve ser o direito a um remédio efetivo. Não basta uma declaração de direitos, este precisa ser assegurada. “Remédio” vem da ideia de cura, reparação, restauração ao estado original, diante de um mal. “Efetivo” significa que ele realmente produza um resultado de restituição ao estado anterior à violação e não que seja meramente formal.
Efetivas são as medidas que protegem o direito da própria violação, que restauram o direito violado, compensam o prejuízo e impedim novas violações. Esta “justiça real” é tão relevante que a Corte Interamericana costuma dizer que “a ilusão de justiça” é uma forma de violação de direitos humanos.
Não adianta acessar o sistema de Justiça e continuar sem a fruição efetiva do seu direito. É assim que muitas vezes nós, promotores de justiça, especialmente no que toca o combate à corrupção e à criminalidade, nos sentimos: diante da ilusão de justiça.
País da judicialização
Como nos acostumamos viver no “país da judicialização”, na “nação da litigiosidade”? Como há quem se orgulhe em dizer que temos o maior número de processos judiciais do mundo? A quem, ainda, celebre o fato de termos 84 milhões de processos tramitando todo ano dentro da nossa “Casa da Justiça” e que receber 35 milhões de processos novos só em 2023 é algo que revelaria o franco “Acesso à Justiça”.
Qual será, porém, a proporção de jurisdicionados que qualificaria o “remédio” recebido como “efetivo”? Qual a expressão de valor ao Império da Lei e da Ordem? Como os nossos desfechos judiciais estão “evitando novas violações”?
Usufruir direitos é, na verdade, sequer ter que conhecer o Sistema de Justiça. Bom mesmo é ter as liberdades, segurança, integridade física e vida, direitos individuais, sociais, econômicos, culturais e políticos assegurados pelo simples respeito e honra da sociedade em que se está inserido e do Estado contratado para servir.
A litigiosidade elevadíssima, infinitamente superior à média de todos os países europeus, é um indicador irrefutável de uma sociedade rompida na ideia de família, dignidade e fraternidade humana. Uma sociedade com direitos demais feridos rotineiramente. Poderíamos tratar de muitos deles, mas este texto não chegaria ao fim.
Como anda o direito mais fundamental: da proteção à vida? Em 1996 tivemos 35 mil homicídios, enquanto em 2015, 59 mil homicídios. É um número maior que os 55 mil que morreram na Guerra Civil da Síria no mesmo ano, ou na Guerra da Bósnia ou do Afeganistão. O Brasil em tempos de “paz” mata igual a estas grandes guerras civis. Equivale ainda, em número de mortes, a bomba atômica de Nagasaki.
E, neste mesmo período de 1996 a 2015 passamos de R$ 34 bilhões investidos em segurança pública para R$ 89 bilhões. E o número de homicídios cresceu em 68% no período. Será que estamos com a dita “ilusão de justiça” ou “remédio efetivo”? Se hoje as pessoas tem medo de sair de casa para trabalhar e serem assaltadas, se adolescentes não podem ir à padaria de bicicleta sem medo, onde iremos parar? Que mudanças teremos se não mudarmos?
A “garantia da ordem jurídica posta” hoje implica em um investimento médio de R$ 146 bilhões de reais por ano, só no Poder Judiciário. É o mais caro do mundo, quando relacionado com o PIB. Colocamos outra centena de bilhões para o resto do sistema judicial e de proteção jurídica: Ministérios Públicos e Defensorias, da União e dos estados, a segurança pública e o sistema penitenciário. No Brasil, os investimentos em Educação representam apenas quatro vezes o que se gasta com o Poder Judiciário.
Vigilância
A Dinamarca e a Bélgica, por exemplo, destinam, respectivamente, 40 e 25 vezes mais na educação face ao gasto com o Judiciário. Se hoje a demanda da criminalidade e violação das leis não permite diminuirmos a estrutura dos sistemas de vigilância e repressão, sob pena de deixar a sociedade ainda mais insegura e vulnerável à criminalidade, o que nos resta fazer para que um dia tenhamos um Sistema de Justiça residual e, portanto, capaz de entregar remédios mais efetivos com uma judicialização excepcional?
Um Sistema para cuidar apenas de conflitos e violações residuais, precisa de uma nação fundada na integridade, formada por seres humanos virtuosos, retos, valorosos, cumpridores de seus deveres e responsáveis por suas obrigações e que estes sejam também os regentes das decisões dos poderes da República. Sim é a esperada sociedade vacinada, formada por cidadãos dotados de razão e consciência que aprenderam a se relacionar uns com os outros a partir do princípio da fraternidade humana. Esta resulta em frutos de dignidade e bem estar, de liberdade, justiça e paz.
O fato é que em um Estado Democrático de Direito maduro, o Poder Judiciário é uma instância residual e subsidiária, pequena, discreta e excepcional, porque existe neste Estado uma sociedade saudável, que sabe se relacionar harmonicamente, e que tem, não só uma cultura da legalidade forte (respeito voluntário ao império da lei e da ordem), mas, principalmente, uma cultura de integridade e ética pública sedimentada, em que cidadãos não só se respeitam, como servem uns aos outros.
Outra expressão firme de uma República madura, e de sua harmonia social, é vermos os prédios das escolas e das universidades, instituições responsáveis pela formação, como os mais bonitos e valorizados da cidade ou do país.
O Poder Judiciário, por sua vez, a quem incumbe conter e limitar as maldades humanas, quanto mais firme o Império da Integridade menor será, sem necessidade de destaque ou tamanho. Equivale a nos hospitais termos poucos leitos de UTIs (muito mais caras para manter), uma vez que a saúde está sendo garantida pelas vacinas, tratamento preventivos e ambulatoriais. Precisamos do mesmo tratamento preventivo para a efetivação de direitos fundamentais.
Prioridades normativas
Importa, por fim, nos dedicarmos às prioridades normativas, orçamentárias e institucionais, com monitoramento e impacto, para implementar com excelência todos os instrumentos concretos necessários para que todas as pessoas, em qualquer idade, condição e lugar, gozem de oportunidades efetivas de um letramento para integridade, para a fraternidade e para a generosidade — ou seja, um letramento para resgatar o sentido de ser humano.
Essas oportunidades de formação, para a excelência fraterna na humanidade, nos levarão a manejar nossas inteligências, criatividades, talentos, dons e competências para servir, ajudar, cuidar e impactar positivamente a vida dos outros, solucionando problemas da nossa comunidade, cidade, nação e das futuras gerações.
É disso que cuida e almeja o Programa NaMoral, implementado pela Secretaria de Educação do Distrito Federal, em parceria com o Ministério Público do Distrito Federal e Territórios, recentemente coroado pela Lei nº 7.662, aprovada, à unanimidade, pela Câmara Legislativa do Distrito Federal.
A Lei NaMoral é o marco legal que garante a condução da Política Distrital de Educação para Integridade, no âmbito das escolas públicas e privadas do Distrito Federal, de forma estratégica, universal e sustentável rumo ao Estado Democrático de Direito maduro, próspero, em que os direitos fundamentais deixam de ser apenas reconhecidos para se tornarem eficazmente usufruídos por todos, indistintamente.
Seja também, como aprendiz e mestre, em seu âmbito de atuação e relacionamentos, um embaixador deste movimento por um Brasil fundado na Integridade. Conheça mais de perto como participar e se envolver nas atividades do Programa NaMoral por meio do Instagram oficial: @namoralmpdft.
- Luciana Asper y Valdés é promotora de Justiça do DF e coordenadora do Programa NaMoral, do MPDFT; também atua como titular da 2ª Promotoria de Justiça Especial Criminal de Ceilândia
What's Your Reaction?






