Nilson dos Santos: registro da etnografia de um tempo extinto

Por Márcio de Lima Dantas Professor de Literatura Portuguesa da UFRN marciomartedantas@gmail.com   Há pouco se apagou de vez no reduto dos dicionários certa palavra-chave. Henriqueta Lisboa         1. Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos estabelecimentos comerciais, ou […]

Oct 5, 2025 - 09:00
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Nilson dos Santos: registro da etnografia de um tempo extinto

Por Márcio de Lima Dantas

Professor de Literatura Portuguesa da UFRN

marciomartedantas@gmail.com

 

Há pouco se apagou de vez
no reduto dos dicionários
certa palavra-chave.
Henriqueta Lisboa

 

 

 

 

1.

Nilson dos Santos (17.06.1970) nasceu em Currais Novos. Iniciou seus
trabalhos com os pincéis, fazendo letreiros e desenhos publicitários nos
estabelecimentos comerciais, ou seja, era sob encomenda. Portanto, o que
predominava era a funcionalidade, o concreto, que existe desde muito como
apelo para a venda dos produtos da casa onde estava assentado o escrito. O
interessante foi que logo os comerciantes reconheceram a verve e vivacidade
do rapaz. Desse modo, não se contentavam com apenas os letreiros, os
números, mas também pediam algum personagem ou objeto relacionado ao
letreiro e ao que era passível de venda no comércio onde estava escrito o
demandado.
Mas há que dizer uma coisa acerca do surgimento da característica da
personalidade do pintor de fachadas ou paredes outras. É que, sutilmente, ele
estava atento ao seu irmão, que também fazia o mesmo serviço. E assim
surgiu o entusiasmo pelo desenho e pela pintura, pois eram detentores de
uma inspiração que parecia estar adormecida desde sempre nas profundezas
da sua subjetividade.
Infelizmente, seu irmão não continuou. Talvez o fôlego estético fosse curto.
Acontece isso no universo da arte. Muitos começam e avançam, porém, não
parece ser um assinalado dentre os que estão no grande círculo, que, na
verdade, vai selecionando a partir de algo que não sabemos direito como
ocorre. Tão somente nos limitamos a indigitar: inspiração.
Enfim, eis um pintor naïf que surge para agregar-se aos tantos ingênuos já
existentes. Só que ele não sabia que viria a ser um dos melhores do estado
do Rio Grande do Norte. Mas quero dizer que não ficou só por aqui.
Participou de exposições mundo afora e ganhou prêmios e reconhecimento.
Apesar de tantas alvíssaras, permaneceu um homem gentil e simples, fácil
de lidar e sem vaidades. Sua pintura reflete essa sua maneira de lidar com a
vida e com sua imensa clientela.

2.

Para efeito didático e de melhor compreensão do conjunto da obra, preferi
arrumar essa profusão de telas em dois estilos. Mesmo amadores são capazes
de discernir essa bipartição. Entretanto, é preciso reparar que há um legítimo
traço do risco e da cor que vai preencher as vestes das personagens ou as
cores das casas dos sertões. Na verdade, o que tem de melhor são as telas de
ingenuidade com temas da vida sertaneja.
É aqui que eu prefiro fazer saber de uma etnografia, À la recherche du temps
perdu (Marcel Proust). Há como uma necessidade de registrar as maneiras
de viver de outrora, tanto no que diz respeito ao utilitário ou funcional,
quanto ao lúdico de inúmeras brincadeiras infantis. Acredito que homens
hoje com mais de 60 anos conseguem se reconhecer nesse lazer feito de
improvisos, de elementos retirados dos arredores, das cercas, do que restou
de uma fruta. Quer dizer, não havia nada de industrializado, tudo era feito
com materiais oferecidos pela natureza.
Basta dizer que essa etnografia de outrora deixava o mundo bem mais
simples, sem modas ou modos que a Ideologia (pensamento das classes
dominantes) imperava com seu mando, fazendo parecer as coisas como
naturais e não como historicamente construídas. Observar e pintar os
costumes de um grupo social, atentando-se às suas crenças, à sua
religiosidade e a como as crianças representavam o mundo e o vivenciavam.
O que me interessa saber e dizer acerca do artista visual Nilson Santos é que
sua pintura, na verdade, não passa de uma bela narrativa de um mundo que
sofreu a ausência de indulto do mito de Cronos (o tempo), assolando cercas
de pedras, carrascos, riachos, casas de taipa, lavouras a serem segadas com
a alegria de colher o que se plantou e não recebendo esmolas do Estado. A
rotina era escandida pelas horas de ocupação nos trabalhos do campo ou
domésticos. Bem diferente dos dias de hoje, em que se mede os expedientes
da rotina pelo culto ao corpo, pelo narcisismo das redes sociais e por quase
que uma obrigação de demonstrar que se é feliz, que está aproveitando a vida
com um copo na mão e sorrisos visivelmente artificiais.

3.

Nilson tem uma série muito bonita e que se assemelha ao pintor de Fortaleza,
Chico da Silva, o maior pintor cearense de todos os tempos. As demais séries
são sua dicção pictórica, ingênua e extremamente lúdica, principalmente no
desenho simples que refoge totalmente ao desenho acadêmico. Acontece
que, nessa série, acaba por se afastar de si próprio. Não que imite o pintor
cearense, mas, ao pintar galos, borboletas, cavalos-marinhos, pavões, ou
seja, só animais, o seu traço diz de uma múltipla diferença do que sempre
foi. Assim sendo, só podemos entender que se trata de uma inquietude
estética, quer dizer, não se conforma, nem parece ter se acostumado com sua
gramática pictórica do que sempre foi, aquela que virou vício ou costume e
foi reconhecida publicamente também nas vendas das telas.
Com efeito, essa série caracteriza-se por não haver o personagem humano,
apenas animais em retratos hieráticos e plenos de elementos ornamentais,
com uma mescla extremamente diferente ao misturar toda uma sorte de
cores. Visivelmente, houve um desejo de plasmar outra espécie de pintura
com referentes (temas, assuntos) distintos do que sempre fora.

4.

A tecnologia, com sua fúria e ânsia de mostrar, e se mostrar a que veio,
buscando, por vezes, à força, o seu lugar no seio das relações
contemporâneas de viver, nada poupou ou foi gentil com os jeitos de
comportamento do que era antes, calcado no simples, na ausência de
malícias, nas tiranias de convencionar o que é belo, para que todos aplaudam
isso que se chama o novo. Mas, na verdade, se, por exemplo, observarmos
com atenção a moda, chegamos à conclusão de que é extremamente de mau
gosto, com seus vestidos estampados e suas calças que parecem feitas de um
lençol.
O sol já se pôs. Não adianta prantear ou lamentar o que não tem volta, o que
a humanidade escolheu como rodagem para seguir e andar a esmo, em busca
de um rumo. Inútil uma vereda saudável. Resta nos contentarmos com as
narrativas contidas nas telas ou na obra de um artista visual. Nilson dos
Santos, detentor de uma enorme disciplina, pinta convulsivamente, sem
nunca tropeçar em si mesmo, sem nunca se imitar, sem nunca deixar de
buscar temas dentro do seu vocabulário.
Eis que o pintor, no caso de ser sua pintura considerada (tomei essa
liberdade) por nós “como” uma etnografia de outrora, e mesmo ainda do que
resta nas capoeiras e sertões adentro, acabou ocupando o papel do
antropólogo. E o que está retratado na tela é o que representa o objeto
(Antropologia Clássica = antropólogo e as comunidades que vai estudar, ou
seja, o seu objeto), sendo que essa etnografia não é a que se encontra nos
livros de Antropologia (como os de Claude Lévi-Strauss).
De todo modo, existe uma relação estreita entre o pintor e seu assunto
(referente), na medida em que o objeto pintado no quadro assoma de suas
entranhas, de seu inconsciente, do seu coração com lembranças, enfim, de
tudo o que está adormecido, e qualquer olhar ou barulho evoca o que tem
para emergir, com uma pulsão, com algo riscado que pode ser uma epifania,
com tudo vindo a ser uma necessidade de ser uma coisa no lugar da outra
(metáfora).
Enfim, temos de admitir que a linguagem simbólica é a que prevalece, com
seus signos e sinais, outorgando ao desenho e às suas cores um pendor do
artista para plasmar determinadas coisas e não outras. Essa seleção são os
paradigmas que habitam o íntimo, desejando ser sintagmas. Ou seja, as
unidades justapondo-se para criar a vivacidade que impera e preenche de
entusiasmo a ingenuidade de meninos, donas de casa, homens na lavoura. E
tudo vem a ser vivacidade, alegria e saudades do que fora até certo tempo.

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